Revisão: Caroline Silva e Valquíria Matiolli
Projeto gráfico: Anna Yue
Diagramação: Anna Yue e Francisco Lavorini
Capa: Fabio Oliveira
Adaptação Para Ebook: Hondana
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Viscardi, Jana
Escrever sem medo [livro eletrônico] / Jana Viscardi. - São
Paulo : Planeta do Brasil, 2024.
ePUB
ISBN 978-85-422-2597-6 (e-book)
1. Escrita – Técnica 2. Escrita criativa 3. Criação (Literária,
artística, etc.) I. Título
24-0147 CDD
808.042
Índices para catálogo sistemático:
1. Escrita - Técnica
Ao escolher este livro, você está apoiando o manejo
responsável das florestas do mundo
2024
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA PLANETA DO BRASIL LTDA.
Rua Bela Cintra, 986, 4o
andar – Consolação
São Paulo – SP – CEP 01415-002
www.planetadelivros.com.br
faleconosco@editoraplaneta.com.br
Para Izabel e Zinho,
que acreditaram em mim desde o dia um.
Sumário
Introdução
O desafio de escrever
1. O que saber antes de começar a escrever
Saber parar
Escrever como sinônimo de ler e observar
2. Não existe certo nem errado
3. As tensões da língua: questões de raça, classe e gênero
A oralidade na escrita
O feminino genérico
A linguagem não binária
4. Caixinha de ferramentas: alguns recursos essenciais
da língua
“Como é que chama o nome disso?”
“Foi morta”?: o lugar da voz passiva nos textos
O sentido e a quebra de expectativa
Explicando demais? O caso dos advérbios
Frases longas, frases curtas
Ponto aqui, vírgula acolá
5. A escrita para além do texto
A escrita e o medo: estratégias?
6. Para finalizar: o que fica?
Introdução – O desafio de escrever
Para começar nossa conversa, talvez eu deva contar que sou
linguista. Ao que você prontamente poderá me perguntar o
que isso significa. Não se preocupe, você não é a primeira
pessoa a carregar essa dúvida; eu já respondi a ela inúmeras
vezes. Linguista é a pessoa que estuda Linguística, uma área
do conhecimento que procura entender as mais variadas
questões sobre linguagem: como um bebê aprende a falar,
como as palavras se formam, como as línguas diferem entre
si, quais as variedades linguísticas de uma mesma língua, e
por aí vai. Dentre as muitas questões a serem estudadas e
exploradas, uma delas muito me interessa: do que é que se
faz um texto e como ele se organiza? Dessa primeira
pergunta outras tantas me acompanham: como fazemos uso
dos recursos linguísticos que nos estão disponíveis para
escrever? Todos os textos devem seguir as mesmas “regras”?
Quais as semelhanças e diferenças entre os vários formatos?
Num mundo em que (ainda) temos um olhar bastante
normatizador sobre a língua e também sobre o texto escrito,
meu interesse se concentra em observar as diferentes
possibilidades nos usos das estruturas linguísticas, sem
buscar determinar uma forma única ou fixa de pensar – e
produzir – um texto. Isso significa que essa maneira de
considerar o texto poderá, em boa medida, diferir da maneira
como um professor tradicional de língua portuguesa (ou,
como se diz costumeiramente, “de gramática”) pensa e fala
sobre língua e, claro, também sobre texto.
No entanto, ser linguista não implica ignorar ou negar o
ensino de língua portuguesa em sala de aula. Há, inclusive,
inúmeros estudos que vêm buscando discutir e (re)pensar o
que se entende majoritariamente como ensino de língua
portuguesa nas escolas, e muitos são os linguistas que se
debruçam sobre o tema.[1] Eu mesma, em diferentes fases da
minha vida, ensinei português para turmas de distintas
faixas etárias. Aulas particulares de preparação para o
vestibular, aulas em instituições de ensino médio e superior:
ocupando esses espaços, eu me deparei com inúmeras
pessoas sofrendo para unir as pontas de seus textos, chegar à
“ideia mais original”, seguir adiante além de um único
parágrafo e, ainda, claro, incluir os tantos conectivos
requeridos para que o texto fosse classificado como “bom”.
Há uma série de questões que atravessam a sala de aula, da
perspectiva tanto de quem ensina quanto de quem aprende:
a realidade socioeconômica, as profundas desigualdades de
oportunidade de estudo e o acesso à cultura e à leitura.
Assim, ensinar e aprender português não é “só” ensinar e
aprender português; é transpassar um oceano de questões
importantes que impactam as dinâmicas de aprendizado da
língua. Nessa jornada, sempre achei curioso o uso da
expressão “ensinar/aprender português” porque, se você
parar para pensar, toda pessoa que entra pela primeira vez
em uma escola já sabe português. O que essa pessoa –
criança ou adulta – muito provavelmente não sabe é fazer
uso de formas escritas do português, o que já torna a
conversa bastante diferente. Aliás, mentira: certamente há
também formas da oralidade com as quais quem chega à
escola não necessariamente tem familiaridade, e é provável
que essas formas estejam também bastante próximas de
formas da escrita que serão ensinadas na escola. Assim, toda
vez que alguém disser que você precisa “aprender
português”, é importante se perguntar o que está sendo
chamado de português. Muitas vezes, é uma variedade
escrita da língua, rotineiramente idealizada e definida pela
alcunha de “norma culta”, sobre a qual falaremos adiante.
Quando interpeladas sobre seus hábitos de escrita, é
também comum que as pessoas afirmem não saber escrever
em português, uma língua muitas vezes avaliada como “muito
difícil”. No entanto, na contramão do que muitas pessoas às
quais já ensinei costumam me dizer, elas estavam expostas à
leitura e à produção de textos escritos variados no cotidiano,
em circunstâncias mais ou menos formais, ao mandar emails de trabalho, produzir relatórios técnicos, enviar
mensagens para amigos, escrever listas de compras ou
algum recado antes de sair de casa. Então, o que significa
dizer que não se sabe escrever em português? E por que as
pessoas assumem tantas vezes não escrever regularmente
quando estão expostas a diferentes práticas de escrita no
cotidiano?
Mesmo agora, como produtora de conteúdo digital, em um
espaço em que procuro continuamente desmistificar os
entendimentos estáticos e idealizados de língua e texto, sigo
recebendo mensagens de pessoas envergonhadas ao me
escreverem. “Por favor, não me corrija, eu não sei escrever.”
Há quem diga que tardou a me enviar uma “simples”
mensagem em uma rede social porque tinha certeza de que
estava escrevendo algo errado e tinha medo de ser corrigida
por mim. As aspas em “simples” são intencionais: escrever
gera tanto medo nas pessoas que uma mensagem enviada a
uma desconhecida pode repousar por dias até que alcance
seu destinatário. O receio, inúmeras vezes, é da avaliação e
consequente correção do que foi escrito ali. Mesmo no
privado.
Sempre me intrigou todo esse discurso em torno da língua
portuguesa e da escrita, mas foram precisos muitos anos e
alguns tantos estudos para elaborar melhor esse incômodo.
Da primeira vez que ofereci o curso “Escrever sem medo”,
minha grande questão era mostrar para as pessoas que elas
escreviam cotidianamente e que o faziam, sim, a partir de
diferentes formatos de texto. Reconhecer isso não implica
afirmar que as pessoas não têm dificuldades para escrever;
também não significa afirmar que somos competentes em
todos os usos escritos possíveis de uma língua. Ninguém é.
Mesmo aquela escritora incrível que você tanto admira. É
possível que ela seja um fenômeno escrevendo um romance,
mas não sabemos de suas habilidades escritas quando se
trata de elaborar, por exemplo, um relatório técnico. E
provavelmente ela não precisará produzi-lo e se preocupar
com sua estrutura. Além disso, seus romances certamente
são lidos e revistos por profissionais do texto que contribuem
para que a escrita seja fluida e chegue até você “nos
trinques”. Não tenha dúvida: este livro que você está lendo
também passou por todas essas revisões e leituras. Ou seja,
isso não deveria ser uma questão: há habilidades escritas que
precisamos desenvolver porque não fazemos uso delas no
cotidiano, porque não são práticas com as quais temos
contato. Quem tem o hábito de escrever regularmente pode
ter mais facilidade em se adaptar à escrita de novos gêneros,
mas isso não significa que o faça sem nenhum desafio.
Afinal, escrever é desafiador.
Não podemos nos esquecer, no entanto, daquilo com que
temos contato. Reconhecer práticas de escrita no cotidiano
de tantas pessoas letradas implica apenas demonstrar que há
formas e formas de escrever, a partir das diferentes ocasiões
a que somos expostos e das demandas de escrita que temos
nos diferentes contextos. Além disso, é importante lembrar,
pessoas analfabetas também estão em contato com textos
escritos. As tecnologias usadas no nosso cotidiano têm
trazido distintas possibilidades, como a leitura automática do
texto em voz alta e o envio e recepção de mensagens por
áudio para consolidar as interações por meio de textos orais.
Então, mesmo plataformas a princípio focadas na escrita
passam a agregar essas possibilidades, como no caso do
WhatsApp.[2]
Assim, desenvolver a habilidade da escrita significa, entre
outras tantas coisas, reconhecer os contextos de uso dessa
escrita. Escrever bem não é sinônimo único e exclusivo de uso
da norma-padrão. De nada adianta usar, por exemplo, um
conjunto de formas rebuscadas atreladas a um vocabulário
pouco conhecido para escrever um e-mail de trabalho que
preza pela objetividade e simplicidade. A língua e, portanto,
o texto não são entidades que estão fora do mundo, isoladas,
imutáveis, estáticas – e é preciso fazer uma leitura do
contexto de produção para entender quais usos se adéquam
àquela ocasião. Ter isso em conta ao escrever todo e qualquer
tipo de texto contribui de maneira fundamental para
“destravar” ao longo da jornada. Além disso, a busca
incessante pelo uso restrito de uma norma faz muitas
pessoas entenderem a própria escrita como constantemente
inadequada. No entanto, ao escrever um texto, é preciso
reconhecer, entre outras coisas, a audiência a que se destina,
o gênero escolhido para transmissão da ideia, os recursos
disponíveis para a produção daquele gênero, as informações
a serem trazidas, os conhecimentos compartilhados entre
quem escreve e quem lê, os processos de revisão e edição. A
graça em escrever está, justamente, em reconhecer as
diferentes nuances e possibilidades dos gêneros textuais, das
inúmeras escolhas que podem ser feitas a partir dos
interesses de quem escreve e leva seu texto adiante.
Escrever demanda, portanto, observar uma série de
características do texto – e do entorno. Demanda também a
desmistificação da forte romantização, idealização e
elitização do ato de escrever em e para alguns espaços como
algo exclusivo e destinado a apenas uma pequena casta de
pessoas. Em uma sociedade tão desigual como a brasileira,
ninguém ganha nada em seguir defendendo – direta ou
indiretamente – um entendimento de língua que ignora as
variedades linguísticas e as impede de adentrar o universo da
escrita e da disseminação de textos.
Com este livro, eu espero poder expandir essa conversa
sobre a escrita para você que está aí do outro lado destas
páginas. São tantas as questões instigantes que envolvem a
escrita. Que possamos então fazer esse caminho de mãos
dadas.
1.
O que saber antes de começar a escrever
“o tempo não para
e, no entanto,
ele nunca envelhece”
- Força estranha, Caetano Veloso
Quando Gal Costa faleceu, em 2022, eu dediquei horas a ouvir
suas canções. No mesmo dia eu daria início a mais uma
turma do meu curso “Escrever sem medo”, que deu origem a
este livro. Eu estava muito emocionada, mexida mesmo. Gal
Costa é um acontecimento. E ao revisitar inúmeras de suas
canções, me deparei com os versos, já tão conhecidos, que
abrem este capítulo. Foi com eles que decidi dar início à
minha aula naquele dia porque essa relação entre o tempo e o
envelhecer me pareceu tão conectada à questão da escrita.
Escrever é, entre outras coisas, deixar registrado no tempo
aquilo que experimentamos num dado momento da nossa
história (e da história em si), não importa se estamos falando
de um texto acadêmico, ficcional ou (auto)biográfico. Toda
escrita é, inevitavelmente, um registro de um dado
momento, ainda que não atue como um espelho, como
representante direta do mundo. E quando revisitamos algo
que escrevemos, esse texto pode ganhar novas cores, uma
nova leitura, e nunca será exatamente o mesmo que foi
antes. Assim, um texto não para de ganhar novos
significados e, talvez por isso, assim como o tempo, não
envelhece.
Na perspectiva que busco trazer para você nestas páginas,
a língua é, então, entendida a partir de sua dinamicidade,
interatividade e heterogeneidade, o que tem implicações
importantes para pensarmos o texto, entendido como um
evento único, produzido a partir de uma dada situação
comunicativa, com um objetivo (ou vários) específico e
destinado a uma audiência, demandando de nós o emprego
de uma série de recursos linguísticos, selecionados a partir
das características que queremos destacar.
Quando entendemos a língua como algo heterogêneo
(porque tem diferentes formas e estruturas, que podem
variar de acordo com questões geográficas, etárias, de
identidade de gênero, entre outros fatores), interativo
(porque se dá na interação entre sujeitos e textos) e dinâmico
(porque muda ao longo do tempo), somos capazes de
perceber de maneira mais abrangente e completa não apenas
a língua, mas também a produção textual, que passa a ser
reconhecida como um processo igualmente heterôgeneo,
interativo e dinâmico.
Assim, uma lista de compras terá características distintas
daquelas de um diário, que terá características distintas das
de um conto, que terá características distintas das de um
artigo científico. Cada um desses textos poderá também
compartilhar semelhanças, mas é provável que você faça
escolhas bastante diferentes ao escrever um artigo científico
ou criar uma lista de compras. Os recursos linguísticos que
emprega (conectivos variados, vocabulário, usos mais e
menos formais da língua, entre outros elementos) para
atender às demandas do formato serão diferentes. É o que se
convenciona chamar de “gêneros textuais”, formatos com
uma certa estabilidade usados quando produzimos um texto
e que nos ajudam a delimitar as demandas dessa escrita.
Pense, por exemplo, em uma redação para o vestibular: o
texto argumentativo ali requerido tem uma série de
características específicas que precisam ser atendidas.
Assim, quem escreve tem a chance de receber uma boa nota
– eis o objetivo desse gênero textual: demonstrar que se sabe
fazer uso de diferentes recursos, transformados em critérios
de correção.
É possível que os critérios para a escrita de um dado
gênero textual estejam explicitados em manuais, como no
caso de textos literários submetidos a um concurso, textos
acadêmicos submetidos à avaliação e posterior publicação
em uma revista ou textos enviados para publicação em
diferentes plataformas de redes sociais. Esses critérios se
tornam norteadores da escrita e são reconhecidos a partir do
estudo e também da observação do cotidiano.
Assim, produzir um texto é pensar também as diferentes
etapas que compõem o processo de produção textual. Ainda
que essas etapas não sejam fixas ou estejam presentes em
todos os textos que se produz no cotidiano, e muitas vezes se
sobreponham no processo de escrita, é interessante
mencioná-las. Em inúmeras ocasiões é importante primeiro
planejar o que se pretende dizer – e como –, para então
produzir, e depois, por fim, revisar um texto.
A etapa de planejamento inclui definir as leituras que
serão feitas como parte do estudo do seu projeto de escrita;
quem é a audiência para a qual seu texto se direciona; quais
os argumentos que você pretende trazer; quais os recursos
linguísticos que você pretende empregar na construção dos
seus argumentos; a partir de qual gênero textual seu projeto
será desenvolvido. Certamente fará parte do planejamento
do seu projeto de escrita pensar também a plataforma de
publicação do seu texto: ele será publicado em um blog? Em
uma rede social? Como parte de um compilado de textos em
uma publicação coletiva em formato de livro? Em uma
revista científica? Em um jornal? Todos esses
questionamentos (e talvez outros que venham à sua mente aí
do outro lado) são importantes porque contribuirão para que
você entenda o formato do texto e já possa, assim, produzilo considerando essas características.
Um exemplo simples: quem decide escrever um texto em
uma rede social como o Instagram precisa ter em vista que os
textos ali publicados têm apenas 2.200 caracteres,[3] nenhum
caractere a mais. Se seu texto ultrapassa esse limite, será
preciso publicar o material “excedente” nos comentários, e
não no corpo do texto principal. Além disso, para publicar
um texto no Instagram, é preciso, necessariamente, publicar
também uma imagem que o acompanha (e antes disso tudo,
claro, é preciso ter uma conta na rede social). Ou seja, o
conhecimento da plataforma de publicação e suas regras é
parte significativa do planejamento do texto para que você se
prepare para as circunstâncias específicas de publicação.
Mais um exemplo: se você está escrevendo uma dissertação,
é possível que tenha que atender a uma série de normas
definidas pelo departamento e universidade em que se
realizou a pesquisa. É fundamental conhecer tais normas e
formatos para estruturar as ideias que você pretende
elaborar na dissertação. Essas normas podem incluir o
atendimento tanto à Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT) quanto a características determinadas pelo
departamento específico, em função das características dos
trabalhos produzidos ali.
É dessa maneira que podemos entender a escrita como
uma atividade estratégica nos diferentes contextos em que é
produzida: em uma newsletter, em um texto para rede social,
em um conto para um compilado ou em uma coluna para um
jornal. Cada um desses formatos demandará reflexões e
estratégias distintas. Vamos a mais um exemplo: na era da
“economia da atenção”, as colunas de jornal vêm sendo
divulgadas com títulos/manchetes inúmeras vezes
sensacionalistas, que causam fúria e, não raro, amplo
compartilhamento. Aqui, cabe uma discussão importante
sobre a ética do jornalismo em tempos de mídias sociais e
disputa de atenção, que atravessa a produção textual e a
estratégia de escolha de estruturas que despertem a atenção
do possível leitor. Mas, sem dúvida, tem-se aí, desde
sempre, o planejamento das escolhas dos títulos para que
atinjam mais pessoas. É com base nesse entendimento das
condições de produção ou de publicação que se vai planejar
um texto, com foco em sua presença nos diferentes
contextos.
A partir do momento em que, idealmente, o seu texto foi
planejado e os estudos que são parte da escrita foram feitos,
chegamos à segunda etapa: é hora de escrever. É possível que
você já tenha feito anotações, escrito o rascunho de ideias ou
o resumo de um conjunto de leituras. Ou seja, as etapas não
são necessariamente lineares. É possível que você volte a
estudar ao longo do caminho da escrita, por exemplo, assim
como é possível que você já revise trechos do seu texto
enquanto ainda o escreve. A escrita se dá por caminhos
tortuosos: há dias em que o texto flui, as ideias se organizam,
você escreve. Mas há dias em que você está diante da folha de
papel ou da tela do computador e nada parece fazer sentido.
O texto parece desarranjado; as ideias, mal estruturadas. No
entanto, é importante entender a escrita como rotina: ela
deve estar sempre lá, mesmo que não flua como o desejado.
Com a conclusão da escrita – ou daquilo que você entende
como parte central do projeto –, chegamos à terceira etapa:
seu texto possivelmente passará por uma revisão – sua ou
profissional, a depender dos recursos (de tempo e
financeiros) que lhe estão disponíveis e também da
plataforma de publicação. Caso se trate de uma postagem
para o seu blog, é possível que você mesma faça a revisão e
publique o texto. Mas se já há uma estrutura de trabalho
coletiva, é possível que parte dessa equipe seja composta por
editoras e revisoras, que leem seu texto criticamente para
identificar possibilidades de melhoria e trechos que não
fazem sentido. Caso se trate, por exemplo, de um artigo
acadêmico, será preciso ainda enviar o texto para a revista
escolhida, e ele será avaliado por pares, pesquisadores da
área com competência para analisar seu trabalho por sua
escrita, pelo tema e articulação teórica escolhidos antes da
publicação. Sugestões de revisão do texto, dos argumentos
ou da bibliografia (que poderão levar você a novos estudos
pontuais) poderão ser feitas. Só depois dessa etapa seu texto
é publicado (ou rejeitado, como é possível acontecer nesse
formato).
Observe que interessante: para falar sobre as etapas de
elaboração de um texto, nossa conversa foi além de
apresentar apenas tecnicalidades do como escrever. É
sempre importante lembrar que escrever um texto depende
de uma série de fatores, que incluem, também, a questão
financeira e de disponibilidade de tempo. E também, claro, a
participação de diferentes profissionais das Letras.
Falaremos mais sobre isso adiante. Para mim, neste ponto do
livro, importa deixar claro que o texto é um evento
comunicativo de caráter dinâmico. Mesmo quando concluído,
ele pode ser revisitado.
Veja, por exemplo, o caso da escritora Lygia Fagundes
Telles. Em entrevista de 2009[4] sobre a nova edição do seu
livro As meninas, ela afirma que acrescentou ao texto
originalmente publicado em 1973 “três ou quatro linhas”,
porque sentiu que precisava trazê-las, ainda que anos depois
de sua primeira publicação. Estamos falando de uma
escritora renomada, com extensa obra literária, que decide
acrescentar ao texto também renomado algumas tantas
linhas, o que nos faz pensar que um novo olhar sobre o texto
pode acontecer a qualquer tempo. No paralelo com os versos
cantados por Gal Costa, o texto também não envelhece: pode
ser relido e reeditado, mesmo tantos anos depois. Isso não
significa que envelhecer seja ruim, é claro. Faz parte da vida
e dos textos. Mas que, antes, a passagem do tempo não o
mata; envelhecer é viver, o que significa também sempre ter
espaço para o novo.
Isso não significa que aquilo que deixou de entrar no texto
não “atormente” quem escreve: em texto[5] sobre o escritor
Fred Moten, Stephanie Borges, escritora e tradutora, pontua
o sofrimento de Moten diante daquilo que ele entendia faltar
em seu livro de ensaios Na quebra: A estética da tradição radical
preta (2023). A falta sentida pelo autor é publicizada catorze
anos depois da publicação da primeira edição da obra, em
2003.
Os exemplos de Lygia Fagundes Telles e Fred Moten nos
lembram de que um texto passa por várias leituras e
ponderações (mesmo depois de publicado) de quem o
escreveu, de quem contribuirá para que seja publicado e,
claro, da audiência que terá acesso a ele a partir da
publicação. Não há quem publique um texto sem que ele
passe por várias mãos. Não há. E, tantas vezes, no meio do
caminho, a releitura leva a reflexões e frustrações e, em
alguns casos, a reescritas, ainda que “pequenas”, como no
exemplo de Lygia Fagundes Telles. A linearidade não é uma
característica intrínseca à escrita. Em contrapartida, como
vimos, a hesitação é.
Saber parar
Que fique claro, porém: a revisita inevitavelmente precisa ter
um fim, ao menos num dado ponto da escrita. As reflexões
sobre o que faltou ou sobrou podem seguir, mas é bastante
provável que você precise parar de intervir no texto. Isabel
Allende, em relato sobre seu processo de escrita no livro Why
We Write [Por que escrevemos, em tradução livre], de
Meredith Maran,[6] observa que passou a ser mais rigorosa
quando começou a escrever usando o computador. Ao
perceber que poderia revisar seus textos enquanto os
escrevia, se deu conta de que seu estilo se tornou muito
“duro”. Aprendeu, assim, a evitar o excesso de correções.
Porque é preciso, em algum momento, parar. Seja porque o
prazo chegou, seja porque o espaço é curto para tantos
acréscimos: não há texto que seja a representação exata do
mundo e de tudo o que desejaríamos dizer, e esse
entendimento poupa tempo e energia de quem acredita que
deverá descrever um estado de coisas “exatamente como elas
são”. Há inúmeras formas de fazê-lo, eis a unicidade de cada
texto, uma de suas características intrínsecas.
Assim, passear pelo próprio texto deve ser um exercício de
reconhecimento e amadurecimento da própria escrita, algo
que acontecerá durante toda a vida de quem escreve. O
“passeio” não deve, contudo, atuar como um limitador da
escrita a partir de uma lógica hostil ou rígida com cada
palavra colocada no papel. Fazer ponderações sobre o que se
escreve é crucial, mas quando o texto nunca é entendido
como suficiente temos, possivelmente, um alerta vermelho.
Eu me lembro, por exemplo, da escrita da minha
dissertação e da minha tese. São textos que, desde
concluídos, não revisitei. Eu mal consigo olhar para eles, se
posso ser sincera com vocês. Escrevê-los foi parte de longas
jornadas de estudo e diálogo com inúmeros autores,
aprendizado e transferência dessas ideias para o papel, com
constantes revisitas ao texto a partir das leituras feitas pela
minha orientadora. Foram períodos importantes dedicados à
escrita e à revisão. Quando os concluí, senti que faltava algo,
que era preciso mais. E, claro, eu poderia ter escrito mais,
porque, como eu disse antes, é sempre possível refletir mais,
estudar mais e, portanto, escrever mais. Mas foi preciso
concluir aqueles dois projetos, entendendo que faziam parte
de momentos específicos da história da minha pesquisa, a
partir de um conjunto de estudos, dados e objetivos de
análise; além, claro, de um conjunto de recursos financeiros
e de tempo disponíveis naquele momento, a partir de um
dado ponto da minha trajetória como pesquisadora,
trajetória que incluía o inevitável aprendizado de escrita
daqueles gêneros textuais. Afinal, só se escreve uma tese
uma vez.
Assim, foi preciso parar: de estudar novos autores, de
buscar novos dados, de incluir mais um capítulo, de
adicionar mais uma nota. Há sempre mais a conhecer no
mundo, e poderia haver mais a ser trazido para aqueles
textos, mas há limites que precisam ser reconhecidos,
porque contribuirão inclusive para demarcar o espaço do
projeto que você opta por consolidar e escrever. O
planejamento do texto pode contribuir até mesmo para essa
delimitação do que fará parte de um projeto de texto. Será
preciso, sempre, em algum momento, dizer “chega,
acabou”. Ora porque há um prazo a ser cumprido, ora porque
a bolsa de estudos acabou; ora porque você chegou à exaustão
por diferentes razões, ora porque não havia mais condições
de seguir com aquele texto. Você, aí do outro lado,
certamente poderá elencar outras tantas razões para a
finalização de um projeto de escrita ainda que pense mas eu
deveria continuar escrevendo, ainda não acabou.
E veja só, este não é um problema exclusivamente seu.
Esse sofrimento é compartilhado até mesmo por pessoas
experientes. Virginia Woolf, escritora, ensaísta e editora
britânica, registrou que a escrita da biografia de seu amigo
Roger Fry lhe trouxe tanta angústia e sofrimento que ela
acabou por aceitar a sugestão de sua irmã: deixou o projeto
de lado para escrever suas memórias, que se transformaram
no livro Um esboço do passado.[7] Ou seja, foi preciso
abandonar o texto da biografia para retomá-lo em outro
momento, depois de um certo afastamento. Há diferentes
razões para esse afastamento, é claro, e certamente você terá
as suas. Por isso, também é preciso saber parar.
Escrever como sinônimo de ler e observar
Eu fico com a impressão de que este livro pode acabar se
tornando um grande apanhado de lugares-comuns. Confesso
a você que não me importo se esse for o entendimento do
público leitor. Sinto uma angústia tão grande ao ver a
maneira como as pessoas idealizam a escrita que a repetição
de lugares-comuns importantes me parece fundamental. Em
especial numa sociedade em que a escrita é colocada em uma
redoma quase mística, que faz com que também o processo
de escrita de um texto seja entendido de maneira
semelhante. É como se qualquer pessoa que escreve seguisse
a mesma jornada: a partir de uma iluminação, ao contemplar
o horizonte, com o olhar perdido, de repente, plum, surge
diante de si um conjunto de imagens e ideias que se
transformam em uma obra. Assim, pá pum. Paira no
imaginário de muitas pessoas a escrita como pura inspiração
de gênios escritores. De repente, algo se revela a quem
escreve e pronto. Basta sentar, munido de papel e caneta, e
tudo está resolvido.
Eu tenho uma notícia pra dar. Não funciona assim. É
possível escrever um conto, um texto jornalístico, um
poema, de uma vez só? Evidente que é. Basta buscar relatos
de pessoas que escrevem regularmente e você vai encontrar
episódios de quem se viu, de repente, quase afogado em um
texto que “simplesmente” veio. Mas o que até mesmo essas
histórias podem esconder é: esse “simplesmente” não é tão
simples assim.
Um texto não surge no mundo embalado a vácuo. Quem
escreve também não vive em uma bolha encerrada em si
mesma, sem acesso ao mundo “exterior”. Isso significa que
somos, todos os dias, “alimentados” das mais variadas
percepções, imagens que nos impactam ou trazem singeleza,
toques, encontros, risos, horror, lágrimas. Todo o conjunto
de experiências que compõem a vida de cada um de nós nos
constitui e contribui para o processo de escrita. Ideias não
surgem do “nada”, mas das inúmeras experiências e
vivências a que estamos expostos. “Do nada”, um clique, e
você escreve a partir de um dos “gatilhos” do cotidiano.
Aqui, de novo, não idealize: o que te “engatilha” pode ser
tanto uma flor bonita diante da sua janela quanto a lixeira
cheia de moscas que rondam a cozinha.
Assim, escrever passa, inevitavelmente, por observar o
entorno (eu não disse que estaríamos navegando no mar do
lugar-comum?). A atenção à vida e a seus detalhes marca a
construção de qualquer texto: para produzir uma reportagem
jornalística, é preciso ter atenção às informações de uma
dada ocorrência a ser reportada; para escrever um poema,
ainda que abstrato, a observação do mundo também pode ser
crucial. E o que é que isso significa? Que as informações que
nos circundam são parte significativa do nosso repertório.
No texto Escrever,
[8] Marguerite Duras, escritora e
dramaturga francesa, relata seu processo de escrita, a relação
com a casa em que escreve, o ambiente ao redor, as pessoas
que fazem parte da sua vida e sua relação com elas enquanto
escreve. Num dado ponto do texto, ela relata a experiência de
acompanhar a morte de uma mosca. Uma mosca. Presa no
vidro, ela se debate, mas, ao fim, morre. Para além de
descrever o episódio da morte e o relato que fez da ocorrência
a uma amiga, Duras também se dedica a pensar o
entrelaçamento entre esse episódio cotidiano e a escrita. A
autora revela, com isso, a importância da observação do
cotidiano, de tudo que há no cotidiano. Por que a morte de
uma mosca não poderia ser um tema para a escrita? Um
parágrafo ou todo um conto, não importa. Esta não é uma
reflexão exclusiva de Marguerite Duras. São inúmeros os
escritos que destacam a importância de se observar o
cotidiano e suas nuances.
Muito me agrada encontrar observações como a de Duras
sobre a escrita porque costumeiramente as pessoas que
fazem meus cursos dizem não saber se têm ideias
suficientemente boas para escrever. Se questionam sobre
seus repertórios culturais, sobre aquilo que alcançam. Esse
outro – o ideal de escritor – sempre parece saber mais, ter
mais recursos. De novo, temos aqui um entendimento
bastante particular – glamorizado e elitizado – de texto.
Temos também um entendimento sobre esse outro que
escreve – e sabe muito, sabe mais, sabe sempre. Contínuas
idealizações: do processo de escrita e da pessoa que se põe a
escrever. Marguerite Duras escolheu falar, entre tantas
coisas, sobre aquela mosca. Minha mãe já escreveu uma
redação sobre a alma de um pente. Eu já escrevi sobre a
maneira como os sons do português se organizam. Cada um
desses textos foi escrito para uma ocasião específica, num
momento específico da vida dessas pessoas. Todos esses
textos foram escritos, e nenhum deles deveria ser invalidado
ou diminuído porque fala de um tema considerado mais ou
menos “nobre”. Quem é que define o que é “nobre” ou
“importante” o suficiente para compor um conto, um livro,
uma postagem em um blog? É claro, não sejamos ingênuos:
entre ter uma ideia, escrever um texto e vê-lo publicado, em
especial por editoras conhecidas, há um longo caminho a
percorrer. Caminho que não necessariamente é justo. O
objetivo em trazer os exemplos anteriores é mostrar que o
seu texto não deixa de ser interessante porque você escolheu
um tema X, enquanto todos estão falando de Y. A questão,
muitas vezes, é mais como o texto está produzido e quem o
está produzindo e menos o quê.
Um texto parte de uma observação do mundo – mesmo
aqueles considerados ficção. É da observação do mundo que
se pode “desviar” dele e construir outras realidades. Dessas
observações do mundo ao redor surgem textos que eu e você
lemos cotidianamente. Não importa se se trata de textos de
ficção ou de não ficção. Todos precisam, em alguma medida,
levar em conta uma dada observação do mundo.
Buscar “O” (assim, com letra maiúscula mesmo)
momento que vale a escrita provavelmente levará você a
jamais escrever uma linha. E a busca por esse momento
especial nos faz pensar, uma vez mais, nos sentidos do texto.
Se é preciso encontrar um momento muito importante,
mágico ou divino que faça jus à escrita, é porque entendemos
o texto como esse espaço privilegiado em que apenas
algumas tantas coisas podem ser absorvidas e apresentadas.
No entanto, há um sem-fim de histórias que partem do
cotidiano para se desenvolverem. Você sabe disso também.
Por que, então, partir da observação do cotidiano para
construir uma história não seria suficiente ou digno? Por que
essa história não pode ser o ponto de partida para que outros
tantos elementos surjam e desbravem as páginas? É a
maneira como nos comportamos diante das experiências no
mundo que contribuirá para a maneira como avaliaremos e
descreveremos a realidade que nos circunda. É o seu olhar
sobre uma experiência que tornará a sua história única, ainda
que compartilhe um sem-fim de características com outras
histórias.
Descobrir um novo produto no supermercado, conversar
com o taxista, abrir uma cerveja no final da tarde, voltar para
casa de ônibus depois de um turno exaustivo de trabalho,
caminhar sozinha pelas ruas ou pelo campo. Cada uma
dessas atividades nos permite observar inúmeros
acontecimentos que estão (ou não) circunscritos a elas: você
pode tanto estar atenta às pessoas no ônibus enquanto volta
para casa quanto pode observar a rotina da pessoa que dirige
o carro ao lado e sequer nota que você observa o que ela faz.
Eu me lembro do tema central de uma série de textos da
escritora e ilustradora brasileira Aline Valek em que ela
observava as pessoas do seu cotidiano, numa caminhada, ao
andar de ônibus ou pegar o metrô. “Escolhia” uma delas, a
desenhava e, em seguida, imaginava uma história para ela. A
partir desse mote, a autora escreveu uma série de textos
ficcionais.[9] A vida, minha gente, é um livro aberto a ser
escrito. Esses episódios todos podem se tornar tópicos – e
inspiração – da nossa produção.
Ou seja: é a partir do seu olhar sobre o mundo que os
temas ganharão as mais variadas nuances. Seu olhar sobre o
mundo traz experiências únicas, mesmo que outras tantas
pessoas tenham vivido experiências semelhantes. Pode
parecer contraditório, mas não é. Cada um de nós vive
experiências ao longo da vida que nos conectam às outras
pessoas da mesma comunidade – e mesmo de outras tantas
comunidades do mundo. Essas mesmas experiências nos
permitem que tenhamos um entendimento particular de
mundo, porque conectamos de maneira particular a relação
entre as diferentes informações a que temos acesso.
Mas não só de observação se constrói a escrita. Já ouvi
vários alunos dizerem que tinham muito medo de não serem
originais em suas escritas. Que sentavam diante do
computador sem conseguir escrever uma linha, não sabiam
nem sequer por onde começar. E ao sugerir que lessem
outros textos, via que muitos se sentiam angustiados por
pensarem que estariam “copiando” outras obras e, com isso,
perderiam a originalidade. Mais uma vez, ponto para essa
lógica torta do texto que brota da terra. Do texto que é
perfeito de primeira, da obra-prima que nasce lapidada e
sem qualquer referência externa. Que curioso esse mundo
tão idealizado, em que outros textos não existem. Que
curioso esse mundo em que as ideias surgem do vácuo, e não
através do contato com outras tantas ideias. Mikhail
Bakhtin, pensador russo, nos sinaliza ainda no início do
século 20 que a dialogia é parte integrante do texto. Ou seja,
todo texto está em diálogo com outros textos produzidos ao
longo da história.[10] Assim, entendo que a busca pela
originalidade não deveria se definir a partir da negligência a
outras obras que podem ser constitutivas da sua escrita.
Entre outras coisas, é a maneira como você articula as
diferentes informações em seu texto que poderá garantir
originalidade ao trabalho.
Assim, não podemos nos esquecer, nunca: escrever é ler.
Não existe escrita sem leitura – do próprio texto, do texto de
outras pessoas. É inevitável para desbravar outros mundos,
ideias e teorias, para conhecer estilos, analisar criticamente
escolhas sintáticas, figuras de linguagens, formatos. É
possivelmente através dessas leituras que você vai encontrar
seu próprio caminho na escrita. Testar a partir de outros
textos é, inevitavelmente, parte disso.
Ler é importante para adquirirmos conhecimento de
mundo, um requisito crucial para a produção e interpretação
textual. É também importante porque poderá contribuir para
entender a maneira como um autor articula os diferentes
argumentos para conduzir seu texto. Mas, além disso, ler é
importante para que observemos a forma: a busca
ensandecida pela “originalidade” faz esquecer a influência
que escritores têm sobre o trabalho uns dos outros. Tanto já
foi dito. E tantos autores escrevem a partir daquilo que os
move em outros textos. Conhecer outros autores, suas
escolhas, sua forma de guiar quem os lê, a maneira como
começam um parágrafo, como usam as vírgulas, como
repetem ou “exterminam” adjetivos: todos esses
movimentos e outros tantos mais podem ser observados a
cada leitura, se é isso que se quer extrair dela. E é a partir
desse tipo de leitura que você poderá reconhecer estilos que
agradam mais e com os quais você mesma gostaria de
trabalhar, a partir de suas próprias ideias.
Exercício
Neste ponto da nossa conversa, sugiro um exercício de
observação e leitura: busque o livro de sua escritora
favorita. Releia um ou dois parágrafos (se for poesia,
uma ou duas estrofes – o importante é ser um trecho
curto) da obra e analise o que há no trecho que tanto
agrada você. É a maneira como descreve os episódios?
A alternância entre frases curtas e longas? O humor
inesperado? Pode ser um texto jornalístico, um
romance ou um artigo de blog. O que importa é buscar
um material que tenha chamado a sua atenção.
A partir dessa observação, foque seu olhar em um
objeto ou uma ação que acontece diante de si e escreva
um parágrafo sobre a situação ou objeto que você
decidiu observar, seguindo o estilo que você
identificou em sua autora preferida. Não há certo ou
errado aqui, o objetivo é fazer com que você vá
reconhecendo o estilo e tente reproduzi-lo na escrita
de um parágrafo a partir de uma ideia sua.
Volte para o texto já escrito alguns dias depois para
revisitá-lo, relê-lo, avaliá-lo. O que você vê? Quais
elementos gostaria de manter, o que acha que não faz
sentido? Enquanto você faz essa reflexão, vamos ao
próximo capítulo?
2.
Não existe certo nem errado
Você se lembra de quando começou a escrever na escola? Das
dinâmicas de produção textual presentes ali? As lembranças
podem ser muito variadas entre as pessoas que me leem,
porque somos um país não só muito grande, mas também
muito desigual, o que tem implicações importantes no
processo de escolarização da população. É possível que você
tenha estudado em uma escola com muitos recursos
disponíveis, ou então em uma escola onde faltava até mesmo
giz e papel higiênico. Da mesma maneira, em algum
momento da sua fase escolar, talvez você tenha estudado e
trabalhado ao mesmo tempo, ou então tenha tido como única
prioridade estudar e aprender. Talvez você precisasse andar
por apenas cinco minutos para chegar até a escola, talvez
você precisasse usar diferentes transportes públicos para só
chegar uma ou duas horas depois. Sua turma pode ter tido
vinte alunos, ou então sessenta, para os quais apenas uma
professora teria de direcionar seus esforços de ensino. São
inúmeras as diferenças que nos cercam. Todas elas podem
reverberar na maneira como os conteúdos serão ensinados e
discutidos por docentes e aprendidos por estudantes. E,
embora não seja o objetivo deste livro trazer uma análise
aprofundada dessa questão, considero fundamental
apresentá-la no início deste capítulo porque é importante
para pensarmos nossa relação com a língua e com o texto. As
profundas desigualdades podem levar a experiências
bastante diversas de ensino e aprendizado, não só mas
também, da língua portuguesa.
Antes de prosseguirmos, é preciso fazer uma observação
fundamental: todas as línguas do mundo variam. Na
verdade, poderíamos aqui até nos perguntar, como o fazem
os linguistas, o que é uma língua, como ela se constitui.
Sugiro, então, um exercício: preste atenção às pessoas com
quem você conversa ou àquelas que você ouve em filmes,
seriados, telejornais. Como elas falam? Os sons e palavras
que utilizam são mais ou menos semelhantes aos seus? Além
disso, como escrevem as pessoas com quem você interage
nas redes sociais? E com quem troca e-mails de trabalho?
As variedades linguísticas nos acompanham o tempo todo,
muitas vezes sem que as percebamos. Estão relacionadas à
idade dos falantes, à região em que vivem, ao seu grau de
escolaridade, à intimidade entre quem está interagindo,
entre outros tantos fatores. Essas variedades não se
restringem, portanto, a aspectos relacionados a diferentes
graus de escolarização dos indivíduos. E ainda que haja
tantas diferenças estruturais e mesmo de metodologias de
ensino, é bem provável que nossas experiências de
aprendizado da língua portuguesa se igualem em um lugar: o
contato bastante marcado pela avaliação e pela lógica
normativa.
O que quero dizer com isso? Que o aprendizado da escrita
costuma se dar pelo direcionamento entre o que está certo e
o que está errado. Essa postura não só desconsidera as
mudanças contínuas da língua – que também reverberarão
na escrita – como também leva a um entendimento bastante
restritivo de todas as manifestações da língua, sempre a
partir do binômio certo × errado, contribuindo, assim, para a
rotineira inferiorização das variedades que não atendem à
lógica do “certo”, apresentada no âmbito escolar e reforçada
por diferentes instituições reguladoras de língua.
Preste atenção à sua postura ante a escrita e a fala a que
você se vê exposta no seu cotidiano. De que maneira você
avalia aquilo que lê e ouve? Compreendendo que há
diferentes formas de expressão empregadas em diferentes
contextos, ou entendendo que há uma forma que está certa,
enquanto todas as demais estão erradas? Se assim for, não
lhe parece curioso que em um universo tão rico de
possibilidades apenas uma, difícil de ser alcançada, é
considerada possível?
Como pontuei anteriormente, quando se diz que se vai à
escola para aprender português, o que se está dizendo é que
se vai à escola para aprender formas específicas do
português, que estão costumeiramente atreladas à normapadrão,[11] conhecida popularmente como norma culta ou,
ainda, gramática normativa.
Ao ensinar a norma nas escolas, muitas vezes o recorte
que se faz se concentra em apresentar o que está certo e o
que está errado na língua. Assim, as variedades linguísticas
(inúmeras!) que vemos representadas (também, mas não só)
naquilo que conhecemos popularmente como “dialetos” ou
“sotaques” ficam à margem da discussão e são colocadas
como formas menores e inferiores da língua. Curiosamente,
no entanto, são essas as formas usadas por quem chega à
sala de aula, e são essas também as formas empregadas pelos
próprios professores que as condenam, em diferentes
situações de uso do dia a dia. A negação desses usos da língua
leva ao que se conhece como “preconceito linguístico”,[12]
resultado de uma lógica comparativa pejorativa entre o que
seria o ideal de uma língua e suas manifestações concretas.
Como as gramáticas costumam pautar a produção de suas
regras em textos literários, específicos, cristalizados e
datados, a tal norma-padrão acaba por se restringir a regras
idealizadas, distantes da produção concreta falada ou escrita
no Brasil, mesmo por aqueles considerados cultos em nossa
sociedade.
Por isso, é importante lembrar: toda e qualquer língua se
transforma ao longo do tempo, ainda que haja esforços –
muitas vezes mobilizados por uma dada elite – que busquem
frear esses movimentos de mudança. Assim, é provável que
formas hoje consideradas correntes e padrão tenham sido,
num passado nem tão distante, formas entendidas como
“erradas”.
Dentre os problemas dessa abordagem do certo e errado na
língua, nomeio três que guardam relação com nossos
interesses aqui: primeiro, é uma abordagem que procura
homogeneizar uma língua que, nem de longe, é homogênea
– as variedades nos mostram isso. Segundo, muitas das
gramáticas usadas ainda hoje para ensinar a norma-padrão
consideram exemplos de manifestações linguísticas de
textos literários antigos; e mesmo que textos recentes sejam
apresentados, os exemplos são escolhidos a dedo para
marcar o que seria a forma correta, e textos literários que não
seguem as regras sugeridas pelo autor são desconsiderados.
E terceiro, a lógica do certo e errado acaba por diminuir as
formas de oralidade como modalidades representativas das
manifestações de língua.
A busca por uma maior homogeneização da língua é algo
relativamente recente na história da língua portuguesa. Um
estudo da professora Maria Carmen de Frias e Gouveia,[13] da
Universidade de Coimbra, nos mostra o quanto há, por
exemplo, variação na marcação de gênero das palavras ainda
nos séculos 16, 17 e até mesmo no século 18. Pense, por
exemplo, que a palavra “planeta” – no sentido de corpo
celeste – era feminina em obras de Gil Vicente, mas
masculina em Os Lusíadas, de Luís de Camões. Hoje,
apresenta as duas formas: uma, masculina, destinada à
definição de corpo celeste; outra, feminina, destinada à
definição de veste usada por párocos em missas. Às vezes,
um texto poderia trazer uma mesma palavra variando na
atribuição de gênero escolhida, ora no feminino, ora no
masculino. O estabelecimento da imprensa e da impressão
de textos em maior escala contribui para essa tentativa de
homogeneização. Na atualidade, essa lógica pode ser
observada, por exemplo, nos diferentes formatos de escrita
formal: há os manuais de escrita jornalística dos veículos de
imprensa, há as variadas exigências para a escrita de textos
acadêmicos, há também os manuais usados pelas editoras
para a revisão e edição de livros publicados, entre outras
ocorrências que você poderá mencionar. E ainda que se
reconheça a importância de uma certa homogeneização e
normatização, não deveríamos reduzir a escrita à produção
textual que se dá a partir de uma dada norma, ignorando, por
exemplo, aspectos da oralidade ou das inúmeras variedades
linguísticas que compõem uma língua.
O professor Carlos Alberto Faraco, linguista brasileiro
bastante conhecido, costuma empregar o termo “norma
curta” para falar das regras que são defendidas sem qualquer
nuance e sem qualquer ponderação sobre as mudanças
linguísticas. O professor Marcos Bagno, outro linguista
também bastante conhecido, nos mostra que a maneira
como se usa corriqueiramente o termo “norma culta” difere
do entendimento que os linguistas têm dela. Para os
estudiosos da linguagem, a norma culta se refere aos usos
correntes da língua por parte de falantes que possuem o
terceiro grau completo e vivem em áreas urbanas. Essa
categorização deriva dos estudos feitos pelo projeto Norma
Linguística Urbana Culta (NURC), dedicado a investigar as
formas empregadas efetivamente por brasileiros letrados
que vivem em centros urbanos de diferentes regiões
brasileiras. Aqui, temos uma diferença significativa: o
projeto investiga manifestações concretas de língua,
mostrando as mudanças que vêm ocorrendo no português
nesse recorte populacional. Já a norma culta como
popularmente empregada no cotidiano se refere às regras
definidas e mantidas em manuais de língua portuguesa que
comumente ignoram as transformações da língua e estão
pautados em exemplos extraídos de obras literárias,
incluindo textos mais antigos, que seguem sendo usados
como referência. É interessante pensar que são escolhidos a
dedo exemplos que atendem ao desejo por uma dada
regulação da língua, mas são costumeiramente ignorados os
exemplos da literatura que se contrapõem às regras muitas
vezes arbitrárias pregadas por esses manuais.
Perceba que há uma distinção importante entre as formas
que são efetivamente empregadas na atualidade e as formas
que são “desejadas” por aqueles que produzem esses
manuais, mas não mais empregadas, em função das
transformações variadas pelas quais passam não só o
português, mas todas as línguas do mundo.
É comum também que se coloque em polos opostos as
formas faladas e as formas escritas. A fala seria, assim,
informal, não planejada, sem edição e, entre enormes aspas,
“não literária”. Já a escrita seria o lugar do formal, do
planejado, do editado e, também, desse “literário”.
Essa divisão em polos distintos já foi, no entanto,
questionada por estudos linguísticos. Um olhar alternativo a
esse reconhece que fala e escrita fazem parte de um contínuo
em que características que são muitas vezes atribuídas
exclusivamente à fala também são características da escrita.
Nessa mesma lógica, características atribuídas mais
exclusivamente à escrita são também características que
podem estar presentes na fala. Isso significa dizer que
oralidade e escrita seriam entendidas como modalidades
diferentes de uma mesma língua, heterogênea,
multifacetada. Pense, por exemplo, em uma palestra: em
geral, esse tipo de produção oral é elaborado previamente,
muitas vezes incluindo um texto escrito que a acompanha.
Temos aí uma fala mais planejada, mais pensada e, portanto,
possivelmente mais formal e “editada”. Não se trata de fala
espontânea, que surge no ato de uma interação a partir de
um estímulo imediato. Em contrapartida, quando você
escreve uma mensagem rápida para uma amiga no
WhatsApp, com pressa, sem revisar, temos aí uma escrita
menos planejada. Assim, em vez de entender a escrita como
o lugar de uma forma única, normativa, o berço exclusivo da
norma-padrão, é mais realista entender escrita e oralidade a
partir desse contínuo, em que as circunstâncias de produção
e o gênero textual, entre outros fatores, contribuem para a
consolidação das características da produção num momento
específico.
Esse contínuo pode levar em conta o contexto de produção
de um texto, a plataforma de distribuição e o público a que se
destina. Essa configuração nos faz entender que minha lista
de compras escrita desconsiderando o plural para os itens
indicados ou uma legenda em uma rede social como o
Instagram que ignore todos os pontos e use apenas vírgulas
para garantir uma fluidez e “ansiedade” ao texto são
possibilidades de uso da língua que não devem ser
condenados: são formas que atendem ao que se propõem
naquele contexto. Da mesma maneira, quando uma autora
decide que um parágrafo de seu livro poderá se expandir por
até duas páginas, em que as ideias vêm interpoladas por
vírgulas e pontos e vírgulas, sem um ponto, ela está trazendo
uma cadência e um ritmo para o texto que não devem ser
questionados pura e simplesmente porque se escolheu não
fazer uso de pontos. Para citar apenas um exemplo
brasileiro, o livro Memória de ninguém,
[14] de Helena
Machado, faz uso recorrente desse recurso, mostrando o
fluxo de pensamento de uma das personagens a partir de
escolhas sintáticas e de pontuação que marcam a confusão.
Não há “erros” ali: há, inclusive, várias normas dentro da tal
norma.
Voltemos, então, aos gêneros: se você deixa um bilhete
para sua namorada ao sair de casa, esse bilhete pode ser
identificado como uma mensagem direcionada a ela em
função de características específicas – mas não estáticas –
desse formato. Assim também será com a bula de remédio:
ao buscar as informações sobre uma medicação que você
precisa tomar, há uma expectativa ante a forma como as
informações estão dispostas ali. Essas características são
comuns às bulas. Outras características poderão aproximar a
escrita de um artigo científico, de uma dissertação de
mestrado ou de uma reportagem jornalística.
É importante que possamos consolidar esse entendimento
e desmistificar os diferentes lugares que a escrita pode
ocupar em nossas vidas – da lista de compras ao artigo
acadêmico. Usamos no cotidiano diferentes gêneros textuais
que demandarão diferentes recursos da língua. Esses usos
serão aprendidos a partir do nosso contato com esses textos
em diferentes espaços de aprendizado, incluindo aqui a
escola e a universidade, mas não apenas nelas. Pense, por
exemplo, na literatura de cordel, frequentemente chamada
de “popular” (e aqui toda uma discussão sobre aquilo que é
rotulado como “popular” ou “regional” poderia ser feita,
mas, infelizmente, esse não é o objetivo deste livro). Ela se
origina a partir de relatos orais, com estrutura característica,
aprendida a partir da tradição oral – não da tradição escrita.
Assim, o que me parece estar no cerne da questão do
“escrever bem” é a apropriação dos inúmeros recursos
linguísticos que nos estão disponíveis (e aqui fiz questão de
não usar o termo gramática, justamente para que não venha
à mente a ideia das regras todas que não podem ser
esquecidas) no processo de escrita. E observe o que digo: no
processo de escrita. Quando a escritora Aline Valek insiste em
dizer que é preciso “confiar no processo”, ela reconhece que
a escrita tem etapas, é parte de uma jornada que se desenrola
ao longo do tempo. Isso implica dizer que seu primeiro texto
não será necessariamente perfeito (há algum texto perfeito?)
e essa “imperfeição” é parte do ato de escrever. E não só a
imperfeição, mas também a hesitação, como pontuei
anteriormente.
Ao ler o livro Coisas que não quero saber, de Deborah Levy,[15]
a descrição do relato de uma entrevista da autora com a
dançarina Zofia Zielińska me chamou a atenção. Zielińska
menciona a hesitação como o centro da sua produção, da sua
presença no palco. Ter consciência de que essa hesitação
pode participar, também, da escrita nos ajuda a compreender
a corda bamba da produção textual, em que a segurança
quanto ao que estamos fazendo nem sempre está presente.
Mas como atravessar a hesitação e se apropriar dos
recursos linguísticos? A observação e o estudo continuado
são parte importante dessa jornada de constante
aprendizado da língua. É preciso ter atenção aos seus usos
em diferentes circunstâncias. Decorar regras e mais regras
não fará a diferença se você não for capaz de reconhecer, na
prática, como fazer uso dos recursos. Um bom compêndio
gramatical, que reconhece mudanças na língua e apresenta
exemplos variados e heterogêneos de uso, pode ser uma boa
ferramenta de busca de formas e estruturas, tornando-se um
livro importante de consulta, assim como também podem ser
um dicionário e um dicionário de sinônimos.
As escolhas também poderão variar ao longo do tempo em
nossa própria escrita. Isabel Allende, no relato que
mencionei anteriormente do livro Why We Write, de Meredith
Maran (2022), sinaliza o incômodo que sentiu ao reler seu
livro A casa dos espíritos anos depois de sua publicação. Ela
destaca o que passa a entender como excesso de adjetivos.
No entanto, no período em que se dedicou a escrever aquele
que foi seu primeiro livro de ficção, era assim que achava que
o texto deveria ser. Não havia nada de “errado” ali.
Essa história – assim como a de tantas outras pessoas que
dedicam suas vidas a escrever – nos mostra que o que
fazemos enquanto estamos escrevendo é testar
possibilidades num universo de recursos possíveis. E a graça
em escrever está no fato de que sempre poderemos fazer uso
de novas estruturas e formatos (e abrir mão de outros) a
partir de novas referências que nos vão surgindo – e, é claro,
a partir de “velhas” referências com as quais decidimos
trabalhar depois do início de um projeto. Para isso, quanto
mais nos desvencilharmos de um entendimento engessado
de língua, mais “testes” nos permitiremos fazer e mais
fluido o texto poderá se tornar ao longo do tempo.
Mais ainda, se pensarmos em um texto bem escrito a
partir da premissa de uma gramática estanque e imutável,
não seremos capazes de perceber o quanto as escolhas
estilísticas estão relacionadas também ao contexto de
produção em que um texto se insere, à persona que se está
consolidando na escrita e ao gênero textual escolhido.
Neste ponto, imagino já estar claro que escrever bem não é
necessariamente sinônimo de escrever fazendo uso da
norma-padrão. Escrever bem pode ser sinônimo de uma
multiplicidade de elementos, dentre os quais destaco aqui
apenas alguns exemplos:
pesquisar com atenção o tópico de interesse;
encontrar as estruturas que atendem ao seu objetivo de
escrita, reescrevê-las, repensá-las, reorganizá-las;
elaborar cuidadosamente quem é o narrador da história;
definir os limites e alcance do seu projeto – num dado
contexto e para uma audiência específica.
Nesse sentido, claro está que para escrever bem é preciso
estudar a língua, sem dúvida; no entanto, o que tenho
tentado mostrar aqui é que estudar língua não é sinônimo de
decorar regras aleatórias ou buscar um refinamento/lógica
rebuscados a que a escrita deverá se submeter.
Fazer essa afirmação não implica ignorar o papel da norma
– papel que, sabemos, é inclusive político. Embora cada vez
mais eu questione esse papel relegado à norma em função
das nefastas consequências de sua defesa em uma sociedade
injusta, desigual e múltipla como a nossa, reconheço a
importância de seu emprego em contextos variados. No
entanto, a defesa de seu uso não deveria apartar do direito à
escrita aqueles que, embora tenham o que dizer, são
desconsiderados e invisibilizados porque não produzem seus
textos a partir dessa norma que se quer única. E insisto, o
emprego da tal norma (qual seria?) não garante um texto
“bem escrito”.
Um bom exemplo pode ser a análise de redações para o
vestibular, recheadas de estruturas decoradas com vistas a
mostrar o que se sabe, o que muitas vezes traz um tom
artificial ao texto, quando do uso excessivo de articuladores
como “em primeiro lugar”, “não obstante”, “destarte”,
“outrossim”, entre tantos outros.
Usá-los não é sinônimo imediato de um texto bem
organizado e coeso. Muitas vezes, no impulso de fazer uso
desses recursos para garantir pontos em um processo
seletivo, as escolhas são feitas sem que se pense de maneira
cuidadosa sobre o texto em si, mas tendo como foco
majoritário – e algumas vezes exclusivo – completar uma
lista de requisitos supostamente requeridos para o bom
desempenho naquele exame. E ainda que possa parecer óbvio
fazer essa escolha, afinal, o objetivo em provas de vestibular
é obter uma boa nota para garantir uma vaga na
universidade, o que muitas vezes se ignora é que um texto
bem organizado não significa necessariamente lançar mão de
inúmeros articuladores para mostrar que se sabe que eles
existem. É preciso saber em que pontos do texto empregálos, se contribuem para a construção do sentido do trecho e
do texto como um todo. É preciso também, como já
mostramos aqui, entender a quem o texto se destina.
Exercício
Neste ponto, quero propor a você mais um exercício.
Pegue lápis e papel (ou então abra um documento em
branco na tela do seu computador). Considere o tema
amplo “medo” e escreva sobre ele por cinco minutos
corridos. Nesse exercício, o objetivo é que você siga
escrevendo sem voltar para revisar o que já está no
papel, ou na tela. A ideia é trazer o fluxo de
pensamento para o texto, a partir da ideia central
“medo”. Se você preferir, claro, pode escolher outro
mote para sua escrita. O que importa é não deixar o
medo de estar escrevendo “incorretamente” impedir
o fluxo da escrita.
Ao terminar os cinco minutos, não retome a leitura
imediatamente. Deixe o texto “descansar” e volte no
dia seguinte, ou depois de algumas horas. Ao reler o
que produziu, concentre-se primeiro em observar
como as ideias foram articuladas, se o fluxo deve ser
reorganizado para acomodar melhor suas impressões
sobre o tema. Então, verifique se os plurais estão no
lugar (e se tê-los no lugar é seu objetivo), os verbos e
suas regências, e assim por diante. Você pode ter
consigo uma gramática para ajudar nos ajustes que
considerar necessários.
Em seguida, você pode oferecer o texto para leitura
externa, de alguém em quem você confia. Quais
impressões tem essa pessoa sobre o que você
escreveu? Quais sugestões são feitas? Como você vê a
primeira versão do seu texto a partir desses múltiplos
olhares? Se escrever é um processo, eis aqui um
exercício que poderá ajudar você a torná-lo menos
doloroso na sua rotina de escrita. Vamos lá?
3.
As tensões da língua
Meu empenho naõ he mostrar a grande abundancia de
vocabulos que a nossa lingua tem herdado como filha, da
latina como mãy, he sim convencer a sem razaõ daquelles,
que reconhecendo-a por filha legitima nas palavras, a
querem fazer bastarda na Orthografia.
(João de Moraes Madureira Feijó, em seu livro de 1734,
Orthographia, ou arte de escrever, e pronunciar com acerto a
Lingua Portugueza)
Em meados de 2021 um jornalista entrou em contato comigo,
buscando minha apreciação sobre um imbróglio que se
desenrolava no universo literário com o lançamento da nova
edição dos livros da autora Carolina Maria de Jesus. Naquele
ano, as obras da escritora estavam sendo reeditadas, com a
participação de Conceição Evaristo e Vera Eunice de Jesus –
filha de Carolina – como coordenadoras do conselho
editorial. Ambas mulheres negras com forte contato com a
obra da escritora. O conselho era composto ainda por
Amanda Crispim, Fernanda Miranda, Fernanda Felisberto e
Raffaella Fernandez. A equipe editorial decidiu manter o
texto majoritariamente como havia sido escrito,
reconhecendo inclusive mudanças vocabulares e estruturais
no texto de Carolina Maria ao longo do tempo, mudanças
essas derivadas do contato continuado com a escrita e a
literatura, nas distintas fases de vida da escritora e nos
diferentes usos de língua trazidos por ela. Como bem pontua
a nota sobre a edição de Casa de alvenaria, essa escolha não se
deu de maneira aleatória: como escritora autodidata, tendo
passado por apenas dois anos de escolarização formal, aquilo
que muitos pontua(va)mcomo erros é reconhecido como
marca significativa de autoria na produção escrita e na
expressão literária de Carolina Maria de Jesus.[16]
Você pode imaginar, é claro, que dessa postura (bastante
bem explicitada e fundamentada na nota explicativa da
edição) surgiu certa “indignação” e vários questionamentos
sobre a validade dessa escolha nos fóruns públicos do campo
literário e de grandes jornais. Foi nesse contexto que entrou
em contato comigo o jornalista que tentava entender se
havia ali uma pauta. Dos debates públicos advindos muitas
vezes daqueles que se colocam como guardiões do que seria
uma dada língua portuguesa (e a gente poderia se perguntar
logo aqui o que se entende como língua portuguesa nesses
casos), é possível encontrar matérias que se perguntavam se
não seria equivocado manter o texto como ele é quando, em
outros tantos livros, a caneta do editor – e das determinações
dos manuais das editoras – acaba podendo interferir em uma
série de usos linguísticos presentes nos textos escritos e
publicados mundo afora. Por que com Carolina Maria seria
diferente, por que não se poderia “mexer” no seu texto?[17]
Ora, uma visita rápida à nota da edição poderia já
responder a essas dúvidas e o tema se daria por encerrado
(não, não se daria, que exagero da minha parte, são séculos
de discussões de alguma maneira semelhantes acontecendo
sem fim). Mas, evidentemente, não foi o que aconteceu.
Artigos de opinião e matérias jornalísticas foram produzidos
questionando a escolha. E se trago esse caso neste ponto do
livro é para destacar – e exemplificar – o quanto a escrita, o
texto e a língua são, antes de tudo, uma questão política, um
espaço de tensão de forças, operando a partir de dinâmicas
de poder que atuam inevitavelmente sobre eles. Todos os
dias, desde quando se decidiu que este imenso pedaço de
terra se chamaria Brasil.
Assim, é até redundante afirmar: não é de hoje que essas
tensões se dão. Voltaremos a Carolina Maria de Jesus, mas
antes disso atentemos à citação que trago no início do
capítulo, extraída do livro Orthographia, ou arte de escrever, e
pronunciar com acerto a Lingua Portugueza, escrito por João de
Moraes Madureira Feijó, em 1734, e citado pelo professor
Carlos Alberto Faraco em seu livro História sociopolítica da
língua portuguesa.
[18] O nome do livro de Feijó já nos convida a
pensar nas tensões a que me referi antes: “arte de escrever e
pronunciar com acerto a Lingua Portugueza”. Com acerto. O
livro do autor não é a primeira gramática do português; a
história da primeira gramática nos leva ainda ao século 16.
Mas esse trecho me chama a atenção por questionar usos
ortográficos correntes naquele momento, ao pontuar que se
busca fazer do português “língua bastarda”.
Houve no Brasil muito questionamento sobre a escrita das
palavras: se deviam seguir a lógica etimológica, do latim, ou
seguir a lógica sônica. Essa é uma história comprida, e não é
nosso objetivo discorrer sobre ela,[19] mas interessa mostrar
o quanto, ao longo do tempo, foi sendo questionada – e
imposta – uma dada forma de escrever, em detrimento de
outras que iam surgindo. Buscava-se definir como escrever
“com acerto”.
Podemos viajar ainda para meados do século 19, quando
diferentes autores da literatura brasileira, a partir de sua
visibilidade além-mar, viram suas produções questionadas
em função de suas escolhas linguísticas. Que língua é essa
que usam? O que estão fazendo? Talvez o caso mais
conhecido seja o de José de Alencar, mas há outros tantos
escritores que, interpelados sobre seus usos da língua,
buscavam caracterizar esse nosso português, criando até
mesmo outros nomes para denominá-lo com vistas a nos
distanciar do que seria o português de Portugal. O escritor
Salomé Queiroga, por exemplo, em resposta de 1871 às
críticas portuguesas, disse que escrevia “em linguagem
brasileira” e “em luso-bundo-guarani”.[20]
Estamos em meados de 1800, muito próximos de quando o
Brasil atingiu o que seria a sua independência política oficial.
É claro que isso não significou romper todo tipo de laço com
Portugal, e embora os debates tenham se tornado públicos,
como vimos nos dois exemplos anteriores, não havia
necessariamente um movimento direto de reforma do
português por parte desses escritores. Estava lá, no entanto,
a disputa da língua diante das críticas que sofriam por
escreverem de maneira distinta dos escritores portugueses
da época.
Jornalistas, gramáticos, escritores. Eis os principais
personagens dessas disputas. Com relação aos muitos
jornalistas que discutiram – e discutem – questões de língua
em suas publicações, estamos muitas vezes falando de
formadores de opinião que defendem uma posição
conservadora em relação à língua e, assim, se colocam como
os guardiões de uma dada forma de escrever. São também
aqueles que vão determinar como é que se aborda a questão
nos debates públicos ao longo dos séculos, haja vista os
embates trazidos a público sobre a escrita de José de Alencar,
ainda no século 19, e as críticas às escolhas editoriais com
relação à obra de Carolina Maria de Jesus, no século 21.
Assim, é interessante voltar nosso olhar para outros
períodos da história para conhecer (e reconhecer) que, como
as ondas que vão e vêm, as conversas sobre língua e aquilo
que é permitido em espaços como os da literatura (mas não
só dela) seguem como uma marca registrada da disputa (e
tensão) – tantas vezes conservadora e elitista – em torno dos
entendimentos sobre o que é a escrita e o que é o texto.
Pode parecer que são questões absolutamente apartadas –
a da língua portuguesa desejada na literatura de escritores
brasileiros do século 19 e a da língua portuguesa desejada nos
escritos, por exemplo, de Carolina Maria de Jesus no século
20 (e 21) – e há sem dúvida um sem-fim de diferenças:
estamos falando aqui de relações de raça, de classe e de
gênero que atravessam também o nosso histórico colonial.
No entanto, o imbróglio se vê aproximado quando uma parte
da justificativa da crítica se concentra em torno da questão
do “que língua é essa?”, do que pode ou não ser dito de uma
dada maneira.
Para mim, trazer essa discussão para o centro não implica
sugerir que toda e qualquer pessoa deixe de fazer uso de uma
dada norma em todo e qualquer projeto de escrita. Trata-se
de colocar em perspectiva o fato de que não há apenas uma
maneira – esta, idealizada – de escrever, e de escrever bem.
Quando lançado, o livro Quarto de despejo, de Carolina
Maria de Jesus, ficou entre os mais vendidos, ultrapassando
inclusive Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado. No entanto,
quando fala sobre a autora no livro Literatura e resistência,
Alfredo Bosi dedica a ela apenas um parágrafo.[21] Muitos
anos depois, Benjamin Moser, ao descrever uma imagem em
que aparecem juntas Clarice Lispector e Carolina Maria, disse
que Carolina “parece tensa e fora de lugar, como se alguém
tivesse arrastado a empregada doméstica de Clarice para
dentro do quadro”.[22] No parágrafo, embora o autor pontue
que Carolina Maria de Jesus é a autora do livro Quarto de
despejo, “um angustiante livro de memórias da pobreza
brasileira”,[23] o foco do parágrafo está em comparar a
postura das duas escritoras a partir da sua interpretação
particular da foto e apontar, com isso, o que seria a diferença
entre as duas autoras: Clarice, diferentemente de Carolina,
pareceria “uma estrela de cinema”.[24]
A violência na descrição da imagem foi percebida pelos
leitores e o trecho foi retirado de edições posteriores do livro,
mas o exemplo nos mostra que, mesmo quando não se fala
diretamente de escrita, está se falando de escrita (e de raça e
classe), e do papel que ela ocupa a depender de quem se é, e
de que língua se usa a partir de quem se é. Língua é
identidade, e a escrita também é um espaço de revelá-la,
reivindicá-la e, por que não dizer, condená-la. Além disso, o
espaço que se dá a escritoras, mesmo que tenham publicado
livros com recorde de vendas, pode variar em função de
razões que ultrapassam o que é o livro em si, mas que têm a
ver com questões de classe, raça e gênero que podem se
“revelar” no texto.
Quando ressurgiu o debate sobre a questão de “corrigir”
ou não os desvios de Carolina Maria de Jesus, um dos
argumentos estava centrado na ideia de que não corrigir seria
“fetichizar” e diminuir a importância do trabalho de
Carolina Maria. No entanto, esse argumento parece ignorar
que o problema não está no português empregado pela
autora em seus livros, mas na maneira como ele é entendido
– e também discutido e lido – dentro de uma lógica
normativa que opera em todos os cantos. A escrita da
escritora, como pontua o conselho editorial na nota da
edição, passa também pela maneira como ela usa os recursos
linguísticos. Excluir e/ou alterar essas formas seria modificar
um elemento que é parte fundamental da escrita de Carolina
Maria de Jesus.
Se as discussões em torno da questão literatura/gramática
se pautassem nos termos propostos por Conceição Evaristo,
escritora dedicada a pensar e trazer características da
oralidade para a escrita (em vez de terem apontado de início
que o que Carolina Maria faz é “cometer erros”), seria
possível construir um entendimento de língua que impediria
a fetichização por essa via. No entanto, bem sabemos, essa
fetichização não acontece “apenas” em função da língua
escrita nos textos de Carolina Maria. A pobreza e negritude
integram sua escrita e essa, durante muito tempo, não foi a
regra nos escritos literários aceitos no cânone. No entanto, é
fundamental lembrar que, antes de – e junto com – Carolina
Maria de Jesus, outras escritoras estavam lá, como Maria
Firmina dos Reis, escritora filha de mãe alforriada,
considerada a primeira romancista negra brasileira, com
Úrsula, seu primeiro livro publicado em 1859,[25] e Zeli de
Oliveira Barbosa, escritora e empregada doméstica, autora do
livro Ilhota: testemunho de uma vida,
[26] que só foi publicado
vinte anos depois do início de sua escrita, em 1993.
Neste ponto, penso, por exemplo, na ideia de
“contralíngua” trazida pela escritora bell hooks em seu livro
Teaching to Transgress: Education as the Practice of Freedom [em
tradução livre, “Ensinando a transgredir: educação como
prática de liberdade”],[27] ao discutir a língua inglesa usada
por pessoas negras descendentes de escravizados. Essa
língua, que mexe naquilo que supostamente não poderia ser
mexido, é a de quem a toma para si para existir no mundo e
se contrapor às lógicas dominantes, colonizadoras e
excludentes.
Assim, cada vez que um jornalista, um crítico literário ou
um membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) delimita
o que é a língua possível na literatura, tem continuidade uma
longa tradição de engessamento do entendimento do que são
língua e escrita, deste ou do outro lado do oceano. Tem
também continuidade um projeto de exclusão e
invisibilização de quem não se encaixa nos moldes do que é
definido como aceitável nesses espaços. O que muitas dessas
figuras formadoras talvez não reconheçam é que elas
mesmas são parte da manutenção do engessamento e da
busca por uma homogeneidade linguística que ignora as
variedades linguísticas, múltiplas, presentes em nossa
língua em função de distintos e inúmeros fatores. Sua
presença também poderá ser notada na escrita, não apenas
na oralidade, e esse acontecimento não diminui o que é a
língua, tampouco o que é o texto ou a literatura.
Exercício
Neste capítulo, falamos bastante sobre a produção de
Carolina Maria de Jesus e sobre as discussões em torno
de sua escrita. Você conhece outros exemplos de
autoras e autores que passam ou passaram por esse
tipo de enfrentamentos na publicação de suas obras?
Se tiver outros exemplos, o exercício aqui está em
buscar contextualizar como são deflagradas as tensões
para esse autor, autora ou autore que você identificou.
Esse tipo de observação a partir do nosso repertório
ajuda a compreender justamente os pontos que
busquei abordar anteriormente ao trazer o exemplo de
Carolina Maria de Jesus.
A oralidade na escrita
Ouvir o que essas tantas mulheres têm a dizer sobre os
distintos desafios da escrita que “foge” à norma é
fundamental para entendermos a força política e social que
emana das produções textuais.
Observe, por exemplo, a questão das marcas de oralidade
na escrita. Quando uma criança chega ao universo escolar,
parte importante do aprendizado da escrita é o
reconhecimento e retirada de marcas de oralidade das
produções textuais para garantir a elas mais clareza e
objetividade. Repetições continuadas de palavras, marcas de
hesitação e continuadores que são comuns à fala, como
“então”, “aí” e “daí”, perdem espaço na modalidade escrita.
A própria segmentação gráfica do texto – assim como o
emprego dos recursos de pontuação – precisa ser aprendida
(e, pasmem!, nem sempre ao longo da história as palavras
foram escritas todas separadamente em um texto, como
vemos hoje, no caso do português). Eis o caminho que nos
leva da modalidade oral à modalidade escrita.[28] Está tudo
bem: por se tratar de modalidades distintas, é importante
reconhecer as características que delimitam as diferenças
entre elas. No entanto, isso não significa que, a partir daí,
toda e qualquer marca de oralidade deva ser banida das
diferentes formas escritas, inclusive (e especialmente) na
literatura.
Vejamos, por exemplo, o caso da escritora Conceição
Evaristo. Em inúmeras ocasiões a autora reivindica o
importante papel da oralidade na sua produção escrita.[29]
Para pontuar apenas um exemplo concreto, no conto “A
gente combinamos de não morrer”, em seu livro Olhos
d’água, ela nos mostra justamente a acolhida de uma marca
da oralidade no texto escrito. “Curiosamente”, ao sair do
livro e ganhar inúmeras citações em diferentes espaços, a
escolha estilística da autora pela concordância verbal em “a
gente combinamos”, corrente na linguagem falada no Brasil,
foi, em diferentes ocasiões, alterada na busca por atender à
norma-padrão. Houve ainda casos em que o verbo
“combinamos” foi usado entre aspas.[30] Ainda que os
estudos linguísticos revelem que esse emprego é corrente em
diferentes variedades do português brasileiro, há aqueles que
não mantêm a escolha da autora, alterando-a para a forma
supostamente preconizada para a escrita.
Também Isabel Allende, em entrevista mencionada
anteriormente neste livro, fala da importância da oralidade
para sua escrita. Ainda que a autora reconheça as diferentes
formas que emprega na produção textual (em relação à
produção oral), ela espera que seus textos sejam lidos como
se fossem parte de uma conversa entre amigas em um
ambiente informal. Observe, com isso, o quanto a oralidade
tem características que as autoras procuram reproduzir em
seus textos para garantir os efeitos de sentido desejados.
Um dos “problemas” das sociedades centradas na escrita,
como esta de que fazemos parte, está na associação direta
entre a escrita e a intelectualidade, derivada do
entendimento da relação entre a escrita e a normatividade. É
parte de uma lógica recheada de preconceitos o
entendimento de que “só pensa bem quem escreve bem”,
uma máxima que vemos circular quando nas eleições, por
exemplo, há quem questione o direito ao voto de quem não é
alfabetizado. Esse tipo de raciocínio, reforço, tão comum às
sociedades centradas na escrita, tem como resultado uma
dinâmica de disseminação de preconceitos marcadora da
desigualdade em que vivemos: as práticas orais não são
reconhecidas como veiculadoras significativas de
conhecimento e sentido; essa veiculação estaria relegada
exclusivamente à escrita. No entanto, não se trata de
qualquer escrita, mas daquela vinculada a uma norma
retratada, como vimos anteriormente, como um conjunto de
regras altamente idealizado, sem correspondência na língua
em uso no momento presente da história. A língua falada
caminha em passos mais rápidos que a escrita, e há alguns
gramáticos que fazem questão de marcar um passo bastante
lento, como reforço da diferença entre os que “bem
escrevem” e os que não alcançaram essa competência.
Porém, é importante dizer, nenhum de nós faz uso dessa
norma-padrão de maneira sistemática, atendendo a todo o
seu conjunto de regras. Estamos o tempo todo – mesmo
aqueles considerados parte de uma elite cultural –
“escorregando” aqui e ali. Textos jornalísticos são um bom
exemplo. É através da revisão e edição que os ajustes para o
atendimento à tal norma se concretizam. Ou não. É comum
encontrarmos “desvios” ao padrão em textos jornalísticos, o
que nos mostra, uma vez mais, a fragilidade da tentativa de
“controlar” a língua mesmo em ambientes mais
monitorados.
Exercício
Aqui, proponho mais um exercício de leitura e
observação: em que gêneros textuais você encontra
formas mais próximas da oralidade? Quais formas
você encontra mais corriqueiramente? Faça uma lista
de até cinco gêneros, se conseguir.
O feminino genérico
Eu me lembro de um relato da linguista, professora e
pesquisadora Carmen Caldas-Coulthard. Ao submeter um de
seus livros para publicação em uma editora de São Paulo,
teve sua proposta negada. Na ocasião, a autora optou por
fazer uso do feminino genérico, alternativa ao uso
do masculino genérico. Em uma das respostas do editor, leu
que a escolha poderia resultar em “enunciados difíceis de
aceitar, como se os homens tivessem deixado de existir”.[31]
Como a própria autora aponta, o editor não parece ter
questionado nem por um instante o uso continuado do
masculino genérico, mas se incomodou com o uso do
feminino.
Para que fique claro do que estamos falando: o masculino
genérico corresponde ao uso da forma masculina dos
substantivos para denotar, de maneira genérica, tanto o
masculino quanto o feminino. De acordo com essa regra, em
uma frase como “os membros da comunidade decidiram
fazer a festa junina no dia 27 de junho”, “os membros da
comunidade” denotaria quaisquer pessoas, não apenas
membros homens. A escolha da pesquisadora brasileira,
derivada da consciência sobre o caráter político da
linguagem, parece ter tido importantes implicações em
função justamente de buscar subverter a lógica corrente. Por
que não seria possível? Por que não se pode “trair” uma
norma que, durante tanto tempo, foi a única a perdurar a
partir de entendimentos de uma sociedade em que o homem
ocupava o lugar central (e único)? Além disso, por que não
questionar a norma e compreender de que lugar ela surge?
Há alguns anos tive contato com um texto da linguista
americana Ann Bodine, em que ela investiga os usos do
masculino genérico na história da gramática da língua
inglesa: o que ela encontra são inúmeros trechos de autores,
ao longo da história, que justificam o uso do masculino
genérico não em função de alguma questão intrínseca à
língua, mas da observação dos autores de que o homem seria
a figura mais importante naquele momento da história. Sim,
é isso mesmo que você leu. Diferentes gramáticos
defendiam, de acordo com a pesquisa de Bodine, que os
homens eram mais importantes e, por isso, se deveria usar o
masculino na generalização de homens e mulheres.
No português brasileiro, a explicação corrente para o uso
do masculino genérico vem também sendo questionada a
partir de estudos que ponderam sobre a recursividade da
explicação.[32] Trocando em miúdos: uma das correntes
explicativas mais tradicionais considera que o masculino, em
português, seria uma forma “não marcada”, ou seja, as
formas masculinas não seriam marcadas por gênero. Quase
uma pegada Adão e Eva da linguagem: o gênero se
manifestaria apenas nas formas femininas, com terminação
em -a. Por isso, o masculino seria usado como genérico. A
partir dessa explicação, a recursividade: o masculino é nãomarcado e por isso é o genérico, e o masculino é o genérico
porque é o não-marcado. No entanto, perspectivas que se
dedicam a apontar os problemas do uso do masculino
genérico têm justamente buscado mostrar o quanto,
historicamente, há muito do social envolvido no que se quer
apenas “gramatical”. É o caso, por exemplo, do estudo de
Ann Bodine sobre o inglês, apresentado anteriormente.
Além disso, uma série de estudos tem mostrado que a
costumeira frase “ao usar o masculino genérico entende-se
que está se falando de todos” não necessariamente procede:
experimentos[33] têm apontado que o masculino genérico é
interpretado apenas como masculino – ou prioritariamente
como masculino – em diferentes culturas e línguas. Essa é
uma discussão acalorada, para a qual não pretendemos aqui
trazer uma resposta final. Mas interessa mostrar o quanto
verdades que parecem sólidas e estabelecidas, na verdade,
estão passíveis de questionamentos, reflexões e, sem dúvida,
contraposições.
Assim, o que há de tão estático na escrita formal que a
impediria de acolher essas “novas” escolhas? Sabemos que a
resposta aqui não está no texto em si, como uma entidade
“natural”, mas na maneira como se determina, uma vez
mais, o que pode ou não estar na escrita a partir da disputa
de forças variadas. Não se trata de uma característica
intrínseca à produção textual, mas de uma lógica defendida –
e monitorada – para a escrita.
Insisto, com isso, na pergunta: por que não seria possível
subverter as dinâmicas da escrita estabelecidas por regras
que vêm sendo estudadas e, a partir disso, questionadas?
Escrita, como eu disse anteriormente, é também um lugar de
identidade e, assim como os diferentes traços de oralidade
podem ser trazidos para a escrita para abarcar essas
identidades, a escolha de formas como o feminino genérico
também pode sê-lo.
Exercício
Você, aí do outro lado, já se deparou com textos
escritos no feminino genérico? Em suas próximas
leituras, proponho um exercício: procure identificar os
casos em que o feminino genérico é empregado, em
especial no jornalismo.
Quer uma dica? Curiosamente, embora o masculino
genérico costume ser a marca dos textos jornalísticos
(afinal de contas, é a norma!), ao mencionar
profissões como a enfermagem, é provável que você
encontre o feminino genérico, não o masculino.
Então, pergunte-se: por quê? Para além desses
exemplos, em quais outros textos você se depara com
o feminino genérico e qual o papel dele no texto?
A linguagem não binária
O ano é 2023. Eu olho para pessoas conversando na mesa ao
lado, na cafeteria para a qual decidi me deslocar para seguir a
escrita deste texto, justo nesta seção, em que falarei sobre a
linguagem não binária, também conhecida como linguagem
neutra. Enquanto olho ao redor, penso na melhor maneira de
apresentar esse tema na relação que ele estabelece com a
norma e o texto.
Minha vontade primeira é dizer “é um tema delicado,
menina, você precisa ver o rebuliço que as pessoas fazem na
internet para falar sobre ele. Tem deputado e vereador até
tentando impedir (ou já impedindo) discutir a questão em
É
sala de aula”. É então que lembro que neste livro não há
deputado ou vereador tacanho que mande e, por isso, posso
falar dessa tensão que reverbera também na língua e no
texto.
A linguagem não binária corresponde a um conjunto
variado de formas que se desloca da binariedade de gênero
feminino-masculino, a partir de formas outras empregadas
quando se está falando de pessoas. Atenção: pessoas. O
objetivo é incluir na língua formas que sejam mais
agregadoras a quem não se identifica a partir da lógica
binária feminino-masculino. Trata-se de um sistema ainda
em desenvolvimento; há algumas possibilidades tanto de
pronomes quanto de terminações de palavras sendo usadas
no português brasileiro. Em 2023, vemos circulando “-x”, “-
@” e “-e” no final de substantivos e adjetivos. Assim, junto
ao “bem-vindas” e “bem-vindos”, vem sendo incluídas as
formas “bem-vindxs”, “bem-vind@s” e “bem-vindes”.
Como a língua é sinônimo de continuada transformação,
muitas têm sido as reivindicações para que se use apenas a
forma “bem-vindes” (e não mais “bem-vindxs” ou “bemvind@s”), o que se observa cada vez mais em diferentes
gêneros textuais: tanto naqueles mais formais, como
campanhas publicitárias e textos acadêmicos, quanto
naqueles mais informais, como conversas em redes sociais.
Um sem-fim de afirmações equivocadas sobre o tema vêm
sendo proferidas em diversos espectros políticos e é preciso
combatê-las. As formas não binárias não substituem ou
negam os usos correntes do feminino ou masculino; não
negam, na língua ou fora dela, a existência das
manifestações de gênero dentro da binariedade, ou seja,
mulheres e homens que se identificam no espectro
feminino-masculino continuam fazendo uso das formas
linguísticas que representam essa lógica. O que se tem, na
verdade, é a tentativa de abarcar na língua as identidades que
não se veem acolhidas pelas formas presentes. Ou seja,
aquela piadinha em que se usa o neutro em toda e qualquer
palavra, mesmo naquelas que não têm nenhuma relação com
seres humanos, além de boba, não faz sequer sentido.
Ao mesmo tempo, é importante entender os desafios de
seu uso em línguas como o português, em que o gênero “se
espalha” em substantivos, pronomes, adjetivos, artigos. Isso
significa que é preciso propor um conjunto de mudanças em
função das características da nossa língua. Não sabemos
quais dessas formas se manterão, ou mesmo se se manterão.
O que temos, no presente, é o uso variado em diferentes
contextos, inclusive na tradução de livros escritos em outras
línguas e que fazem, em suas línguas de origem, o uso de
formas não binárias. Ou seja, trata-se de um fenômeno
mundial: falantes do inglês, alemão, espanhol e mandarim –
para citar apenas alguns exemplos – vêm propondo essas
inclusões em suas línguas.
Há uma série de complexidades em seu uso que nos
impedem, como linguistas, de determinar se elas se
consolidarão por completo nas línguas e de que forma o
farão. As formas em que a declinação vem acontecendo com
mais regularidade são os substantivos. Caso você se depare
com um texto que faz uso da forma “menine”, você já sabe: é
uma forma não binária, em disputa no campo das tensões da
língua e também, claro, da sociedade. Em um mundo em que
se invisibiliza e violenta pessoas de identidades trans, a
busca pela visibilidade na língua é uma demanda
significativa (mas não a única).
Se quiser fazer uso do recurso em contextos de escrita
formal, você precisará tomar uma série de decisões
linguísticas para manter a unidade do seu texto.[34] É aqui
que está o desafio: por se tratar de formas em variação, há
diferentes possibilidades de uso, porque ainda não há uma
escolha homogênea. Além disso, como apontei
anteriormente, o gênero em português não fica restrito aos
substantivos, assim a flexão nas diferentes palavras pode ser
complexa porque ainda se está a pensar como fazê-lo. No
entanto, em razão da maior presença de pessoas não binárias
em círculos variados de escrita, trazendo suas histórias,
essas formas começam a circular mais, o que também
contribuirá para que diferentes soluções e sugestões sejam
trazidas e acolhidas.
É o caso da discussão que vem sendo promovida em grupos
de tradução e escrita que procuram se afastar da lógica
binária feminino-masculino para além da linguagem não
binária na produção textual. Em 2023, por exemplo, foi
traduzido para o português o livro O desafio dos semideuses,
escrito por uma pessoa não binária, Aiden Thomas. No livro,
foi preciso trazer para a estrutura da língua portuguesa a
correspondência daquilo que foi proposto pele autore[35] em
sua escrita em inglês. E aqui temos uma questão linguística
interessante: em inglês os substantivos não declinam em
gênero; assim, quem traduz e edita em línguas que têm
flexão de gênero em nomes (como em português) ou verbos
(como em alguns casos no russo) precisa buscar alternativas
de como lidar com essas estruturas na tradução. Conforme
essas ocorrências vão surgindo, os espaços que têm papel na
“regulação” indireta da língua, como as editoras, vão
buscando os caminhos para abarcar o emprego das formas
em textos escritos. É importante, portanto, no planejamento
do seu texto, caso pretenda fazer uso desses recursos, ter
uma conversa com quem supervisiona e acompanha seu
trabalho, para garantir que há um entendimento dos
envolvidos na escrita do projeto fazendo uso das diferentes
formas.
Exercício
Agora que você sabe como se estruturam as formas
não binárias, proponho aqui também um exercício de
observação e escrita. Primeiro, busque em textos
variados como se dá o emprego dessas formas.
Observe como você as utiliza: a linguagem nãobinária surge como alternativa ao masculino genérico?
Apenas em palavras específicas? Quais pronomes
estão sendo utilizados e em que contexto? Faça uma
lista para entender as manifestações concretas desses
usos e defina se há um padrão. Como você construiria
seu texto abarcando essas formas? Em seguida,
escreva um parágrafo fazendo uso delas, a partir dos
exemplos de uso que você analisou em sua pesquisa.
Para orientar melhor o exercício, você pode acessar
um dos inúmeros manuais com orientações para o uso
da linguagem não binária.[36] Como você construiu seu
texto abarcando essas formas?
Neste capítulo, eu me concentrei em mostrar algumas das
tantas tensões que podemos encontrar na língua. De maneira
mais ampla, trouxe o aspecto da oralidade, presente na
escrita de tantas autoras e autores mundo afora, mas trouxe
também dois exemplos da discussão de gênero nas línguas
que vem sendo trazida para os textos escritos já há vários
anos.
Esse é um debate longo, para o qual trouxe apenas alguns
elementos na tentativa de ilustrar o quanto a escrita não é
homogênea e o quanto temos um longo caminho a percorrer
para que leitores e críticos não fiquem de boca aberta perante
as mudanças que se manifestam explicitamente diante de
seus olhos em suas leituras.
Considerando as diferentes dinâmicas de opressão que se
manifestam também na língua, conhecer movimentos que
promovem mudanças variadas em textos escritos nos
permite, uma vez mais, entender que a língua e o texto
mudam. Isso não implica afirmar que tudo no texto muda,
não é isso que está em questão. Muitas vezes as mudanças
acontecem aos poucos, ao longo do tempo, como também
vimos aqui. Indivíduos e grupos que escrevem na tentativa
de se desvincular da norma têm de lidar com essa visão ainda
hegemônica de língua como algo estático e predeterminado
como um todo. Em diferentes circunstâncias, o que se vê são
respostas que oprimem e disseminam violência e
preconceito. Aqueles que têm esse tipo de postura ignoram
que muitas das regras às quais se apegam fortemente hoje
foram, no passado, entendidas como desvios da língua. Aqui,
deixo um recado: língua é mudança, e escrita também o é,
não nos esqueçamos disso.
4.
Caixinha de ferramentas: alguns recursos
essenciais da língua
“(…) na minha cabeça vou deslocando as vírgulas, trocando
um verbo por outro, afinando um adjetivo. Muitas vezes
escrevo mentalmente a frase perfeita e volta e meia, se não a
anoto a tempo, ela me escapa da memória.”
Rosa Montero, A louca da casa
Pode parecer contraditório trazer um capítulo em que vai se
apresentar e discutir uma série de recursos linguísticos da
composição do texto, tendo em vista que falamos tanto sobre
a questão da norma e do quanto ela se impõe tantas vezes
negativamente nos textos. Mas é justamente por nos vermos
“confinados” a uma lógica tão normativa que é preciso falar
sobre os inúmeros recursos que nos estão disponíveis no ato
de escrever.
Há uma distinção importante entre 1) reconhecer os usos
que se faz no presente e a relevância deles para um projeto
de escrita; e 2) considerar a norma idealizada e distante da
concretude dos textos como a única possibilidade de escrita.
Neste livro, a proposta fundamental é reconhecer os diversos
caminhos que nos levam à escrita e como esses caminhos
podem se dar de maneiras muito distintas, acessando
“normas” bastante diversas, relacionadas a cada projeto
único de dizer. É como nos descreve Rosa Montero: trata-se
da “afinação” do uso de uma gama ampla de recursos.
Pensemos, por exemplo, em “mas”, “porém”, “todavia”,
“contudo”, “no entanto”. É uma lista de conjunções que eu
decorei ainda na escola. Com você também foi assim? Nunca
mais as esqueci. A princípio, o objetivo era poder conhecer a
diversidade de recursos disponíveis para construções
adversativas, mas a “decoreba” veio da necessidade de ter o
meu conhecimento sobre as conjunções avaliado, posto à
prova. Também não me esqueci de “se eu vou A e volto DA,
crase há; se eu vou A e volto DE, crase pra quê?”. Aprender as
regras de uso da crase foi um verdadeiro tormento. E quando
penso nas redações que eu escrevia na escola, sempre me
vem à mente a avaliação. A escrita, inúmeras vezes, tinha
apenas um destino: a nota. A professora era leitora e
avaliadora da norma ao mesmo tempo, muitas vezes apenas
leitora-avaliadora, porque não havia tempo hábil para seguir
explorando as possibilidades de reorganização textual em
meio às inúmeras atividades requeridas para que
aprendêssemos tudo de que precisávamos para seguir em
frente no ano escolar.
Já adulta, as avaliações podem seguir sendo parte da
escrita, seja porque você a utiliza no trabalho e pode ser
julgada pelas escolhas que faz, seja porque escreve
mensagens nas redes sociais que são “corrigidas” até mesmo
por completos desconhecidos. Quando temos nossa escrita
vista em termos normativos e, com isso, tão avaliativos,
pode ser que nos sintamos menos compelidas a desbravar o
universo do escrever, testar formatos e recursos.
Em vez de pensar – e produzir – textos a partir da lógica
avaliativa e normativa, em que é preciso encaixar este e
aquele elemento para mostrar o que se sabe, prefiro
entendê-los a partir de seus movimentos:[37] ora
apresentamos um novo elemento, ora revisitamos algo que
foi dito previamente. Nesse vaivém, temos a possibilidade de
contrapor, adicionar, equivaler ideias, entre outras tantas
formas de articulação de informações que vão se
equilibrando em um texto.
Tais movimentos se dão com o uso de recursos linguísticos
que serão escolhidos a partir do nosso conhecimento sobre
eles num dado momento da nossa trajetória e do projeto de
texto que nos propusermos a desenvolver. Escreveremos um
conto? Um relatório técnico? Uma poesia? Apresentaremos
diferentes argumentos em uma sequência que, juntos, serão
usados para provar um ponto? Quem escreve e assina o texto,
como se apresenta e quais estruturas sintáticas escolhe
empregar? São inúmeros os aspectos que podem ser
abordados quando pensamos nos recursos coesivos e nos
aspectos atrelados à coerência de um texto. Não tenho aqui a
pretensão de falar sobre todos eles, o que seria impossível no
espaço proposto para esta nossa conversa, mas trago a seguir
alguns exemplos que podem nos ajudar a pensar (e
desbravar) nossa escrita. Trago trechos de textos de
diferentes formatos, ficcionais e não ficcionais, justamente
para mostrar que cada texto demanda de nós a observação de
como usamos os recursos todos que nos estão disponíveis.
“Como é que chama o nome disso?”[38]
É possível que você também se lembre: na escola, quando um
tema era definido para a escrita – digamos, “poluição no
Brasil” –, um grande desafio se avizinhava: como falar sobre
“poluição no Brasil” sem repetir, o tempo todo, a palavra
“poluição”? Talvez uma das primeiras lições de quando se
estuda escrita para o vestibular seja justamente evitar a
repetição de vocabulário para mostrar que se tem um bom
conhecimento das palavras do dicionário. Então, um nome
deve ser substituído por outros, seus sinônimos, ou seja,
palavras que teriam sentido semelhante. Foco no
“semelhante”: há sempre outros sentidos agregados nas
palavras que vamos empregando no caminho.
O uso dos sinônimos contribui para o movimento do texto:
depois de uma primeira menção a um nome que nos
apresenta um dado tema, os sinônimos nos permitem voltar
ao que foi trazido anteriormente, com formas que vão, ainda,
acrescentar nuances de sentido. Da mesma maneira, os
pronomes também podem cumprir esse papel de retomada
em diferentes momentos e nós, muitas vezes, fazemos uso
desses recursos sem sequer percebermos. O problema está
em quando nos concentramos na preocupação com a tal
“repetição” e acabamos por tornar o texto vago ao tentar
desviar o tempo todo da palavra que, supostamente, não
deve ser repetida, na busca por sempre inovar em uma nova
menção a ela. Assim, na escrita, é preciso observar a maneira
como você está se referindo a elementos importantes que já
foram mencionados anteriormente. Como estão sendo
resgatados? Qual a conexão de sentido entre as palavras que
estão sendo empregadas?
Além disso, é fundamental ter em vista que a escolha dos
nomes para tratar de um assunto sustenta a lógica
argumentativa dos textos (no caso de um texto não ficcional
– jornalístico, por exemplo), ou a caracterização de
personagens (no caso de um conto ou romance). Eu gosto de
um breve exemplo comparativo que conheci no livro A coesão
textual, escrito pela professora Ingedore Koch.[39] As
sentenças são:
1. Reagan perdeu a batalha no Congresso. O presidente dos
Estados Unidos vem sofrendo sucessivas derrotas
políticas.
2. Reagan perdeu a batalha no Congresso. O cowboy do
faroeste americano vem sofrendo sucessivas derrotas
políticas.
Para entender a implicação das diferentes escolhas para o
sentido das sentenças, é importante saber que Ronald
Reagan foi presidente dos Estados Unidos, mas, antes disso,
foi ator de cinema. Nos trechos apresentados, o movimento
de volta a uma ideia expressa anteriormente é feito a partir
de escolhas distintas: em 1, temos Reagan referenciado como
“presidente dos Estados Unidos”; em 2, como “cowboy do
faroeste americano”. Há uma diferença significativa de
sentido quando se escolhe chamá-lo de “presidente” ou de
“cowboy” em um trecho que se dedica a apresentar sua
atuação como presidente, informando que ele “perdeu a
batalha no Congresso”. É possível que o uso de “cowboy”
seja feito, por exemplo, para ironizar – e diminuir – a
posição ocupada pelo presidente ao referenciá-lo como um
dos personagens que interpretou no cinema. Uma escolha
dessa natureza faz parte do desenvolvimento do projeto de
texto de quem escreve: ao falar sobre as conquistas e/ou
falhas de um governo, como se escolhe apresentar seu
principal representante?
Pense, por exemplo, no conhecido editorial do Estadão
“Uma escolha muito difícil”,[40] sobre o segundo turno das
eleições de 2018, publicado em outubro de 2017. Ao buscar
retratar características profissionais e planos de governo dos
dois candidatos à presidência naquele momento, Fernando
Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (à época, PSL), o jornal chama
Bolsonaro de “apologista da ditadura”, “ex-capitão” e “ele”,
enquanto chama Haddad de “preposto de um presidiário”,
“porta-voz daquele presidiário” e “um regra-três”. Aqui é
interessante pensar no peso que se dá, na nossa sociedade,
às informações trazidas por esses nomes escolhidos. “Excapitão” faz referência ao cargo que Bolsonaro já ocupou,
enquanto não se faz nenhuma menção à profissão de
Haddad. O candidato de esquerda é constantemente colocado
como coadjuvante, “preposto”, “porta-voz” ou “regratrês”, e Lula, ex-presidente do país, é referenciado apenas
como “presidiário”. Ainda que Bolsonaro seja chamado de
“apologista da ditadura”, outras informações sobre essa
relação não são repetidas ou reforçadas. No texto, claro,
outros elementos são importantes, mas é interessante
pensar como se escolhe nomear e referenciar os
protagonistas do “embate” político.
O parágrafo que começa a apresentar o que seria o plano de
governo de Bolsonaro é introduzido por “no caso de
Bolsonaro” e, em seguida, são trazidas as vagas informações
sobre o possível plano, com destaque para a apresentação de
Paulo Guedes, economista, como assessor do candidato.
Segue um parágrafo de destaque a Paulo Guedes:
Mesmo Paulo Guedes, porém, foi bastante vago sobre os
planos de governo, que mencionam genericamente um feroz
plano de privatizações e a redução do tamanho do Estado.
Quando Paulo Guedes inadvertidamente citou a possibilidade
de ressuscitar a CPMF – o famigerado imposto do cheque –,
foi prontamente desautorizado por Bolsonaro, que lhe
ordenou silêncio absoluto até o final da campanha.[41]
Para entender a centralidade de Guedes no texto, é
importante reconhecer a importância dada pelo jornal ao
aspecto econômico liberal, com o qual Paulo Guedes parecia
se afiliar.
No caso de Haddad, o parágrafo que introduz a
apresentação do que seria o plano de seu governo começa por
“Já as propostas do campo lulopetista”, sem apresentação do
nome do candidato, mas sim do “campo lulopetista” ao qual
ele se afiliaria, com destaque para Lula, que teria sido
candidato caso não tivesse sido preso. Nesse ponto do texto o
candidato é chamado de “regra-três”, uma maneira de
apontá-lo como coadjuvante da própria campanha.
Já as propostas do campo lulopetista são bem conhecidas de
todos, pois foram essas ideias que lograram mergulhar o País
numa profunda crise econômica, política e moral. Como não
pôde se candidatar pela sexta vez à Presidência, por ter sido
pilhado em grossas malfeitorias com dinheiro público, Lula
da Silva viu-se obrigado a encontrar um regra-três. A escolha
recaiu sobre Fernando Haddad, que docilmente cumpre o
papel de porta-voz daquele presidiário, num aviltamento
grosseiro do processo eleitoral. Todos os movimentos da
campanha são planejados de dentro da cela de Lula da Silva
na Polícia Federal em Curitiba – e até o programa de governo
apresentado por Haddad se chama ‘Programa Lula’.[42]
A escolha dos fatos a destacar sobre as propostas e seus
protagonistas, a ordem em que as informações aparecem, os
verbos e advérbios também constroem o sentido e são
escolhidos a dedo para compor o texto. Aliadas a esses
recursos, as formas de nomeação dos candidatos são
importantes marcadores para levar o leitor a pensar qual
seria o candidato “menos pior”[43] para assumir a
presidência. Tais escolhas ajudam a apontar não só o
caminho argumentativo traçado no texto como também, e
principalmente, a postura ideológica do jornal ante o cenário
discutido no editorial.
Da mesma maneira, em um texto ficcional, a escolha de
como se referir a uma personagem pode mostrar, por
exemplo, a perspectiva que o narrador (ou uma outra
personagem) quer imprimir sobre ela. Claro, essa escolha
recai não apenas sobre pessoas, mas sobre quaisquer seres
animados ou inanimados a que nos referimos num texto.
Vejamos, por exemplo, um breve trecho do livro A palavra que
resta, do escritor Stênio Gardel:
Uma carta inteira. Uma palavra seguindo a outra, quantas
palavras? Mandar carta para uma pessoa que não sabia ler, só
sendo. A ponta do lápis pairou acima da linha. O próximo
nome tinha escrito a carta cinquenta e dois anos antes. Ao
lado do caderno, o envelope encruado, sempre fechado.
Raimundo não deixou ninguém ler e envelheceu com o desejo
de saber o que ela diz crescendo dentro dele. Feto idoso,
rebento tardio. A carta guardava uma vida inteira.[44]
Esse trecho aparece logo no início do livro, quando nos é
apresentada a carta que Raimundo recebeu e não leu.
“Carta” é referida de diferentes maneiras, inclusive como
“carta”. Vejamos: “uma carta inteira”, “carta”, “a carta”,
“ela”, “feto idoso”, “rebento tardio”, “a carta”. Poderíamos
indicar ainda “o envelope encruado”, que nos remete
também à carta.
Mas eu gostaria de me concentrar nos elementos “feto
idoso” e “rebento tardio”. Observe que “feto” e “rebento”
não são palavras que nos levam diretamente a pensar em
“carta”, mas a sequência narrativa nos faz compreender que
se trata dela. O desejo de saber o que ela diz “cresce” dentro
dele, feito um “feto idoso”, um “rebento tardio”. A analogia
é marcante e está conectada ao que vem em seguida, quando
o narrador diz que a carta guarda “uma vida inteira”. A vida,
o feto, o rebento, a carta. Os movimentos de idas e vindas do
texto. Tais associações são construídas com o suporte das
escolhas nominais que vão se consolidando pelo caminho.
Por isso, fórmulas definidas de escrita não são
necessariamente úteis. Não é preciso que as relações entre
partes de um texto sejam óbvias: importam as conexões que
vão se estabelecendo pelo caminho.
A citação pode nos ajudar ainda a pensar sobre a questão
da repetição, que mencionei no início do capítulo.
Questionada em manuais de escrita, seu emprego não deve
ser simplesmente condenado. É preciso entender seus usos
nos diferentes gêneros textuais e os efeitos de sentido que
carregam. Neste trecho, a palavra “carta” aparece em vários
momentos, sem que haja qualquer prejuízo na construção do
projeto. Ao contrário: em combinação com as escolhas das
estruturas sintáticas, elas dão corpo ao texto. No início do
parágrafo, por exemplo, com uma sentença composta apenas
pela estrutura nominal “uma carta inteira”, temos o anúncio
do objeto, que pode trazer um tom de suspense, de tensão.
Em seguida, uma sentença que remete à oralidade traduzida
em pensamento “mandar carta para uma pessoa que sabia
ler, só sendo”, como quem reclama da atitude de quem a
enviou. Em seguida, surge “a carta”, que posteriormente não
será repetida pelo uso da elipse em “Raimundo não deixou
ninguém ler [a carta]” e vai aparecer uma vez mais no final
do parágrafo em “a carta guardava uma vida inteira”. São
todas menções que vão se refazendo e reconstruindo à
medida que outros elementos vão se agregando a elas. A
É
repetição dá o compasso da narrativa no trecho. É uma marca
do ritmo imposto para mostrar a importância dela.
Quando trago aqui exemplos do processo de escolhas
referenciais num texto, ou seja, de como se vai chamar algo a
que nos referimos na escrita, é importante lembrar uma vez
mais que estamos falando de movimentos de idas e vindas.
Esses movimentos nos permitem repetir o uso de um mesmo
termo e causar, com isso, diferentes impressões. Também
nos permitem escolher novos termos, como também
discutimos aqui, e acrescentar sentidos que são importantes
para o entendimento do tratamento que se escolheu dar aos
temas discutidos. Não há uma fórmula de como proceder.
Tudo dependerá da sua intenção, do projeto que está
conduzindo, do gênero textual escolhido e dos
encadeamentos que você vai construindo ao longo da escrita.
Observe, com isso, que não se trata simplesmente de buscar
sinônimos, como se fossem meros “substitutos” de uma
palavra específica, para garantir que não haverá repetição
demasiada no texto. Trata-se também (e não só) de pensar
qual impressão se pretende passar a partir dessas escolhas,
qual o sentido veiculado pela cadeia nominal consolidada no
texto.
Exercício
Agora que trouxemos uma série de exemplos, que tal
partir para a observação da maneira como esses
encadeamentos se dão em textos que você lê no
cotidiano?
Escolha um texto de sua preferência e faça uma
leitura atenta em busca dos substantivos e pronomes.
Observe também os momentos em que os termos
ficam apenas subentendidos, como no caso das elipses
(quando um termo ou estrutura é suprimido para não
ser repetido). Como eles se articulam na organização
do sentido do tema em destaque no texto?
“Foi morta”?: o lugar da voz passiva nos textos
Já ouviu falar da voz passiva? É um recurso bastante utilizado
pelos jornais. Hoje mesmo, enquanto escrevo este livro,
visitei um portal de notícias e lá estava uma manchete
dizendo assim: “Com placar de 3 a 1 contra Bolsonaro,
julgamento no TSE é suspenso”.[45] Aqui, temos a estrutura
verbal de voz passiva “é suspenso” (verbo ser + verbo no
particípio), que faz com que “julgamento” seja colocado
como o sujeito dessa sentença, deixando em destaque o que
foi suspenso, em vez de quem suspendeu o julgamento. Como
eu disse, é um recurso comum no jornalismo. Costuma visar
à objetividade e à neutralidade, o que nem sempre é possível
atingir.
Seu uso vem sendo questionado justamente por trazer
para o centro quem sofreu uma ação, deixando de fora do
foco de atenção quem a promoveu. No caso da sentença
trazida no parágrafo anterior, essa questão não parece ser
crucial. Contextualizo: enquanto escrevo o livro, acontece no
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o julgamento de uma ação
que acusa o ex-presidente Jair Bolsonaro de abuso de poder e
uso indevido dos meios de comunicação. Todos os dias vêm
sendo veiculadas informações sobre o julgamento, e as
matérias relacionadas costumam vir em grupo nos portais de
notícia. A suspensão do julgamento é parte do processo e já
aconteceu em outro momento na mesma semana. Assim, o
jornal escolheu não focar em quem suspendeu o julgamento,
mas no que foi suspenso, por se tratar de um procedimento
corriqueiro do tribunal.
No entanto, o uso da voz passiva pode ter um impacto
bastante diferente quando se está tratando de notícias de
violência. Vejamos, por exemplo, como ela funciona em
casos de feminicídio,[46] em que ganham destaque a ação e a
pessoa contra quem a ação foi cometida, mas não aquele que,
possivelmente, a cometeu. Aqui, o “possivelmente” é
importante porque uma das premissas de um jornal está em
não condenar quem é, a princípio, inocente. O problema se
revela quando, nessa tentativa, acaba-se por ignorar o
agente, invisibilizando o possível responsável pelo ocorrido.
Um exemplo: “Mulher é morta a facadas dentro da própria
casa em Araruama, RJ; ex-marido é o principal suspeito”.[47]
Temos na manchete a estrutura passiva “é morta”,
acompanhada, na mesma sentença, de algumas informações
sobre o ocorrido, como “dentro da própria casa em
Araruama, RJ”. “Mulher” tem o destaque na oração, trazida
como sujeito, embora não tenha cometido a ação – ela, na
verdade, sofreu a violência. O ex-marido, principal suspeito,
aparece apenas na segunda oração. Sentenças que se
concentram na vítima, como a apresentada, são muito
comuns no noticiário sobre violência contra a mulher. Em
muitos casos, o possível agressor sequer é mencionado.
Costumeiramente se juntam à estrutura da voz passiva
imagens da mulher, o que reforça o foco nela, e não em quem
cometeu a agressão.
É comum que se diga, e talvez você esteja pensando nisso
aí do outro lado: “Ah, mas não se pode condenar em uma
matéria de jornal alguém que ainda passará por julgamento”.
Ao que eu prontamente responderia que você tem toda a
razão. Meu objetivo aqui não é propor nenhum tipo de
injustiça a partir da reflexão sobre o uso de uma dada
estrutura linguística. No entanto, textos podem ser escritos
de maneira bastante variada. E como eu sempre digo em
meus cursos e vídeos para as diferentes redes sociais, todo e
qualquer texto pode ser repensado, refeito, reescrito. Afinal,
um texto não nasce no vácuo. Assim, seria possível trazer o
sujeito apontado como agressor para a oração principal,
explicitando com isso a relação de violência do homem
contra a mulher – a base do feminicídio –, sem condená-lo
previamente: “Ex-marido é principal suspeito de matar
mulher dentro de casa a facadas”.
Observe a diferença na escrita da manchete aqui: o
principal suspeito de cometer a violência está presente na
manchete, e a voz passiva não precisaria ser empregada
nesse caso. Este é um exercício que pode ser feito para todos
os textos: há sempre uma outra maneira de descrever uma
situação, mantendo, inclusive, a ética profissional
jornalística.
Ao propor aqui essa discussão, talvez surja uma dúvida:
estou sugerindo que não se deve mais empregar a voz
passiva? Não, não é isso. O objetivo é mostrar que as escolhas
sintáticas que fazemos têm implicações importantes na
maneira como um episódio ganhará destaque, em quais
aspectos ganharão o centro da discussão. É importante
reportar casos de violência contra a mulher; nosso país tem
um grave histórico de violências que seguem sendo
perpetradas. No entanto, é preciso deixar claro quem comete
tais agressões de maneira rotineira. Mulheres não são
mortas por algum agente etéreo; homens agridem,
violentam, matam mulheres. E essa informação, tantas
vezes ignorada na produção das manchetes de casos de
feminicídio, pode ter destaque em uma manchete que
reporta uma violência, mais uma vez, mantendo a ética
profissional do jornalismo e, ao mesmo tempo, garantindo
que todos os sujeitos que podem ter participado da
ocorrência estejam destacados – em vez de ignorados ou
deixados em segundo plano.
Assim, compreender como funcionam as diferentes
estruturas sintáticas contribui para entregarmos as
informações a quem nos lê de maneira socialmente
responsável. No caso da voz passiva no jornalismo, os
próprios manuais das redações recomendam seu uso,
ignorando frequentemente as reivindicações feitas contra o
emprego dessas estruturas em exemplos como o anterior.
Essa situação vem mudando a partir das inúmeras críticas
que vêm sendo feitas a esse padrão, e o exemplo nos mostra
o quanto a escolha por uma estrutura linguística pode ter
implicações que vão muito além da questão da norma.
A discussão sobre a escolha das estruturas sintáticas de
maneira mais geral, não apenas da voz passiva, me faz
pensar na escritora americana Vivian Gornick. Em seu livro
The Situation and the Story: The Art of Personal Narrative [em
tradução livre, A situação e a história: a arte da narrativa
pessoal],[48] a autora nos apresenta a importância da
descoberta da persona para a elaboração desse tipo de
narrativa. Essa persona, a autora entende, demanda,
inclusive, uma sintaxe própria a ser elaborada, construída, o
que nos revela a importância da atenção à estrutura para os
projetos de escrita. Para a autora, essa sintaxe não é
necessariamente a mesma empregada em outros projetos de
quem se propõe a escrever uma narrativa pessoal. É possível
que ela precise buscar e estudar quais recursos se adéquam
especificamente àquela persona que está sendo construída
naquele texto. Assim, importa reconhecermos que as
escolhas das diferentes estruturas é relevante para todo e
qualquer gênero textual. Essas escolhas marcam nossos
projetos de escrita, ficcionais ou não ficcionais.
Exercício
Considere as duas sentenças do caso de feminicídio
trazido anteriormente:
1. “Mulher é morta a facadas dentro da própria casa em
Araruama, RJ; ex-marido é o principal suspeito.”
2. “Ex-marido é principal suspeito de matar mulher
dentro de casa a facadas.”
Procure reescrever a oração, trazendo uma
alternativa à minha sugestão de reescrita da
manchete. Quais caminhos você encontra, mantendo
a ética na escrita do texto? Quais escolhas sintáticas
você fez para este exercício de reescrita?
O sentido e a quebra de expectativa
Criolo é o nome artístico de Kleber Cavalcante Gomes, um
cantor, compositor, rapper e ator brasileiro. No álbum Nó na
orelha, lançado em 2011, há uma canção composta por ele
chamada “Lion Man”. Nela, encontramos os seguintes
versos:
Retomando as atividades do dia:
lavar os copos, contar os corpos e sorrir a essa morna rebeldia[49]
Quando tem início o verso “retomando as atividades do
dia”, é lançada sobre nós a expectativa do que se vai
apresentar a seguir, ou seja, possíveis tarefas do dia. A
escolha vocabular nos coloca diante de um universo em torno
do que são essas atividades com as quais se lida no cotidiano.
Nosso conhecimento de mundo, que vamos adquirindo ao
longo da vida, contribui para essa construção. Cada um de
nós tem um entendimento do que são atividades do dia, do
que é corriqueiro, em função de questões de classe, de
gênero, de religião, entre outras. Mas é possível que haja um
conjunto amplo de atividades que se “cruzem” e que sejam
entendidas por grupos e comunidades distintos como
atividades de um dia comum. Por vivermos em uma
sociedade na qual compartilhamos uma série de hábitos e
rotinas, compartilhamos também esse entendimento, que
inevitavelmente perpassa a construção do sentido no texto.
Essa expectativa sobre as possíveis atividades de um dia é
mantida quando a primeira delas nos é listada no verso
seguinte: “lavar os copos”. Essa é, de fato, uma atividade do
dia bastante comum na vida de muita gente. No entanto, aí
está a beleza da escrita e das possibilidades que um texto nos
dá: diante da perspectiva lançada, é possível que você
imagine uma segunda tarefa, talvez doméstica, que se siga a
“lavar os copos”. Eis que, para nossa surpresa, surge “contar
os corpos” e, em seguida, “sorrir a essa morna rebeldia”.
“Lion Man” pode ser entendida como uma homenagem
aos artistas independentes e suas batalhas cotidianas
(“Artista independente leva no peito a responsa, tiozão / E
não vem dizer que não”). O nome da canção faz referência a
um seriado japonês lançado na década de 1970, em que um
samurai se transforma em um “homem-leão” para
enfrentar monstros diversos. Na última estrofe da música, a
relação entre o personagem Lion Man e Criolo se estabelece
através do verso “Criolo no estilo Lion Man”. Na estrofe em
que apresenta as atividades do dia, a ideia do que seriam
essas atividades se reconfigura a partir do momento em que
“lavar os copos” dá lugar a “contar os corpos”, algo que não
necessariamente tomaria nosso imaginário quando nos
deparamos com o primeiro verso dessa estrofe.
Esse exemplo nos mostra que construir o sentido de um
texto é elaborar uma cadeia coerente de ideias ao longo do
caminho. No entanto, essa cadeia não precisa seguir uma
linha de raciocínio convencional, aproximada do senso
comum: como vimos em “Lion Man”, quebra-se uma
expectativa para dar lugar a outro universo, que nos
surpreende, incomoda, desperta curiosidade. A quebra em
“Lion Man” não nos desorienta de maneira definitiva; o que
ela faz é recalibrar nossa busca pelo sentido, que foge do
óbvio do que seria entendido como as tais atividades do dia.
Gosto desse exemplo para discutir as diferentes
possibilidades de construção do sentido, sem que se ignore o
todo do texto. A quebra de expectativa tem aí uma razão de
acontecer. Quem escreve não deve buscar a todo custo
quebrar um fio interpretativo de um texto simplesmente
“porque sim”. É preciso se conectar ao seu projeto de dizer.
A estrofe em questão nos ajuda a compreender como o texto
se consolida a partir do jogo da manutenção e quebra de uma
lógica de sentido compartilhada entre nós, a partir
justamente do conhecimento de mundo que em certa medida
compartilhamos. Para muitos de nós, lavar os copos é uma
tarefa cotidiana; contar os corpos, não. Para tantas outras
pessoas, no entanto, contar os corpos é também parte
bastante corrente do cotidiano, seja metaforicamente, seja
concretamente, em função das inúmeras dinâmicas de
violência com as quais se convive. Basta ler os jornais para
estar diante de inúmeros casos, muitas vezes entendidos
como uma verdadeira “contagem de corpos” corriqueira, em
função da frequência com que acontecem.
É no texto que se constrói esse jogo, mas um texto não
caminha só. Ele desperta em nós a busca pelo sentido, que se
encaminha a partir das inúmeras conexões que vamos
estabelecendo na jornada da leitura e da escrita. É no texto
que se estabelecem expectativas que, ao serem quebradas,
nos colocam diante da confrontação da multiplicidade de
mundos e entendimentos sobre eles e sobre o texto.
Exercício
Você se lembra de alguma leitura que te impactou por
trazer essa quebra de uma expectativa sobre o que
viria a seguir? Se sim, retome este texto e busque
sistematizar, como fizemos aqui, quais elementos
levaram à quebra de um sentido esperado e ao
estabelecimento de novas possibilidades
interpretativas. Em seguida, elabore um parágrafo em
que você busca essa quebra de expectativa no
sequenciamento de ideias do seu texto.
Explicando demais? O caso dos advérbios
Advérbios são uma classe de palavras descritas como
modificadoras de verbos, adjetivos e até mesmo outros
advérbios. Isso significa que, em um caso como “respondeu
vigorosamente”, “vigorosamente” é um advérbio que estaria
acrescentando um sentido ao verbo “responder”. Eles
formam uma combinação importante; no entanto, por serem
bastante descritivos, podem se tornar uma combinação
“indesejada”, a depender do efeito de sentido que se quer
causar. Em um dado momento de um romance, por exemplo,
é possível que um texto muito “explicado”, em que toda ação
vem acompanhada da marca “verbo e advérbio” (como em
“respondeu vigorosamente”), seja declarativo demais, em
vez de propor a tensão a partir de outros recursos que não
envolvam necessariamente a explicitação direta de uma
emoção. Vejamos: sempre que escrevemos um texto,
fazemos escolhas, tiramos uma palavra aqui, acrescentamos
outra ali. Não é possível que se diga exatamente tudo. Você
assume que quem lê irá preencher as lacunas deixadas no
texto a partir do conhecimento de mundo que possui,
evitando, com isso, a redundância ou a explicação
demasiada. Assim, estamos sempre ponderando sobre as
informações que decidimos incluir em um texto. Em um
conto ou romance, é possível que você também não queira
trazer propositalmente todas as explicações para um
episódio para permitir que a pessoa que está do outro lado,
lendo o livro, construa ali pontes de sentido. Assim, nem
tudo precisa ou deve estar explícito na tentativa de despertar
o interesse do leitor. É aqui que o “respondeu
vigorosamente” pode acabar por se tornar “revelador
demais”, por exemplo, na descrição de um diálogo, em que
cada fala vem acrescentada de marcas explicativas como
essa. Por isso, ao descrever alguma ocorrência no texto, é
importante se perguntar: o clima da cena já não está
suficientemente apresentado através de outros recursos?
Essa combinação não torna o texto artificial? É preciso fazer
uso desse recurso para que uma situação seja bem descrita?
Quais outros caminhos posso percorrer?
O caso dos advérbios é também interessante quando
pensamos em seu uso nos textos jornalísticos, em especial
em situações em que se busca manter uma suposta
neutralidade. Trago um exemplo retirado de matéria da Folha
de S.Paulo do dia 3 de julho de 2023: “Famosos pedem prisão
de André Valadão após fala supostamente
homotransfóbica.”[50]
É interessante pensar a escolha pelo uso do advérbio
“supostamente” na sentença. Explico: em um de seus cultos,
o pastor menciona, ao falar sobre o casamento homoafetivo,
que Deus já não poderia fazer nada a respeito porque já “meti
esse arco-íris aí. Se eu pudesse, matava tudo e começava
tudo de novo”. Segue dizendo “mas já prometi a mim
mesmo que não posso, então agora tá com vocês”.[51] Ainda
que o pastor tenha dito que apenas repetiu o que estava na
Bíblia – sua fala se apresenta de tal forma como se Deus
estivesse falando –, é inegável reconhecer o conteúdo como
homofóbico e transfóbico, ao sugerir o possível fim da
existência desses grupos em “se eu pudesse, matava tudo e
começava tudo de novo”. A escolha do jornal, ao reportar o
caso, foi afirmar que a fala seria “supostamente”
homofóbica, momento em que o advérbio tem função
importante por permitir que não seja categórica a afirmação
de que a fala foi homofóbica. O advérbio aqui qualifica o
adjetivo “homotransfóbica” e coloca em dúvida o teor da fala
do pastor.
Esse é um recurso importante do jornalismo, mobilizado
muitas vezes em função de aspectos jurídicos para evitar
uma acusação direta de uma personalidade pública. Busca-se
assim reportar o episódio, ainda que qualificadores sejam
incluídos para minimizar possíveis efeitos da manchete
sobre os envolvidos. É um exemplo significativo por nos
mostrar que as escolhas vocabulares, aqui refletidas
cuidadosamente na inserção do advérbio que redimensiona o
peso da manchete (ao mesmo tempo que pode diminuir a
gravidade do que está sendo reportado), se dão por fatores
diversos, relacionados aos efeitos de sentido pretendidos em
função das mais variadas questões, incluindo aspectos
jurídicos.
Deixo, com isso, a pergunta: quantas vezes, ao escrever
um texto, você se perguntou se deveria incluir um advérbio
que “amenizasse” ou “reforçasse” o sentido do que você se
propôs a dizer? Já observou, em textos de outras pessoas,
como esse tipo de escolha impactou sua leitura?
Frases longas, frases curtas
No início do seu livro Niketche: uma história de poligamia, a
escritora moçambicana Paulina Chiziane nos apresenta uma
narradora que faz elocubrações sobre um barulho que vem de
longe: “Um estrondo ouve-se do lado de lá. Uma bomba.
Mina antipessoal. Deve ser a guerra a regressar outra
vez.”[52]
É possível que o trecho desperte sua curiosidade diante do
suspense que se apresenta: o que será o estrondo? Para criar
essa dinâmica de tensão, suspense e surpresa, há ao menos
dois recursos empregados. Talvez o primeiro a se destacar
seja a maneira como vai se desencadeando o referente “um
estrondo”, que em seguida é apresentado como “uma
bomba” e “mina antipessoal”. Essas nomeações abrem
caminhos para explorarmos um campo de ideias que não
necessariamente seria o primeiro a se pensar apenas com a
palavra “estrondo”. No parágrafo, essas ideias se consolidam
com a nomeação da “guerra” como uma possibilidade do que
pode estar acontecendo.
No entanto, não só a especulação em torno do estrondo e o
que ele representaria dá o ritmo para o texto. Observe, por
exemplo, a alternância entre frases curtas e longas no
parágrafo. Na primeira sentença, uma inversão: em vez da
ordem mais corrente “ouve-se um estrondo do lado de lá”,
escolhe-se “um estrondo ouve-se do lado de lá”, destacando
com isso o tópico “um estrondo”. A partir da apresentação
dessa estrutura, o que temos é a sequência de duas frases
curtas, compostas apenas pela estrutura nominal “uma
bomba” e “mina antipessoal”. Cada sentença curta nos traz
uma expectativa do que poderia ser o estrondo. Em seguida, a
sentença “deve ser a guerra a regressar outra vez” encerra o
parágrafo. A alternância entre frases mais curtas e mais
longas junto da tentativa de nomear o que seria o estrondo dá
dinamismo ao trecho inicial, importante para o
estabelecimento da curiosidade do interlocutor.
Essa alternância não se fará presente apenas em romances
ou outros formatos de textos ficcionais, em prosa ou verso, e
poderá, sem dúvida, promover diferentes efeitos de sentido,
a depender das demais características do texto. E quando, em
manuais de escrita, nos deparamos com a sugestão de evitar
frases longas, pode haver aí algumas razões, dentre as quais
destaco:
1. muitas vezes as frases longas podem ficar incompletas,
porque quem as escreve “se perde” no meio do caminho;
2. muitas vezes as frases longas não vêm acompanhadas da
pontuação adequada para a leitura e o entendimento da
sentença;
3. muitas vezes as frases longas são resultado de um
pensamento complexo que se quer exprimir e que
poderia ser organizado a partir de duas ou mais frases
mais curtas, concatenadas.
Assim, o problema não está em fazer uso de frases longas
em seu texto, mas na maneira como elas estão estruturadas e
em quais efeitos de sentido se pretende passar com elas (veja
a seção seguinte).
Em especial quando se trata de textos acadêmicos, é
comum encontrar parágrafos longos com pensamentos
complexos bastante emaranhados feitos de uma única
sentença, que poderia ser expressa em várias, mais curtas e
objetivas. Nesses gêneros textuais, objetividade e clareza são
marcas recorrentes, muitas vezes impressas a partir do uso
de estruturas mais “simples” e diretas. No entanto, lembrese de que não se trata de uma máxima que se aplica a todo
gênero textual e a todo texto: fundamental é entender como
a estrutura de que você fez uso garante a fluidez da leitura e
se conecta com seu projeto.
Ponto aqui, vírgula acolá
Não me parece possível falar em pontuação sem lembrar o
escritor português José Saramago. É possível ler longos
parágrafos de seus textos sem que haja pontuação diferente
das vírgulas. Observe que eu disse “sem que haja pontuação
diferente das vírgulas”. A escolha por essas palavras é
proposital: não se trata de um texto “sem pontuação”; é um
autor que escolhe as vírgulas como recurso principal de
pontuação, o que é bem diferente. Vejamos o exemplo
extraído do livro O evangelho segundo Jesus Cristo:
Não chores, Mãe, tenho o meu trabalho, sou pastor, Pastor,
Sim, Cuidava eu que terias seguido o ofício que teu pai te
ensinou, Calhou ser pastor, é o que sou, Quando voltas para
casa, Ah, isso não sei, um dia, Ao menos, vem com a tua mãe
e os teus irmãos, vamos juntos ao Templo, Não vou ao
Templo, mãe, Porquê, ainda tens aí o teu cordeiro, Este
cordeiro não vai ao Templo, Tem defeito, Nenhum defeito,
este cordeiro só morrerá quando chegar a sua hora natural,
Não te compreendo, Não precisas compreender, se salvo este
cordeiro é para que alguém me salve a mim, Então, não vens
com a tua família, Já ia de partida, Para onde vais, Vou para
onde pertenço, para o rebanho, E onde anda ele, Agora está
no vale de Ayalon, Onde fica esse vale de Ayalon, Do outro
lado, Do outro lado de quê, De Belém.[53]
Nesse trecho, são as vírgulas, aliadas a letras maiúsculas e
minúsculas, que distinguirão as falas das duas personagens
que interagem no diálogo. É através delas que é estabelecido
o ritmo da cena, com a alternância entre respostas curtas e
longas da mãe e do filho. É uma conversa, marcada pela
oralidade, trazida para o texto. A oralidade, que já
mencionamos neste livro, está presente também na
literatura e nas reflexões, por exemplo, de Conceição
Evaristo. Observe que sequer o ponto de interrogação tem
espaço na construção das sentenças. É preciso ativar o
conhecimento sobre as dinâmicas interativas de um diálogo
para identificar que se trata de perguntas e respostas, por
exemplo, em “Pastor, Sim” e “Quando voltas para casa, Ah,
isso não sei, um dia”. Quem começa a ler textos do autor será
confrontado com distintos estranhamentos e inquietudes
diante de sua forma de escrever. É uma escolha que tem
impacto, como eu disse, sobre o ritmo e sobre a maneira
como quem lê interage com o texto. Ao se afastar de uma
dada tradição de escrita em língua portuguesa, suas escolhas
têm também impacto sobre a recepção de sua obra pela
crítica que, em diferentes circunstâncias, pontuaram
negativamente tais características.
Estamos mais uma vez diante da reflexão em torno das
escolhas que se deslocam da norma, do tradicional, e se
consolidam a partir de um outro lugar, que valoriza a
oralidade no texto e a pontua, entre outras formas, a partir
dos usos das vírgulas e maiúsculas e minúsculas. O autor não
é o único escritor a fazer uso dessa estratégia, mas talvez seja
o escritor do século 20 mais conhecido por empregá-la.
No livro Memória de ninguém (já mencionado
anteriormente), a escritora brasileira Helena Machado nos
apresenta uma narradora lidando com o luto e a ansiedade
que a acompanham diante da passagem do tempo. Em
alguns momentos, essa narradora parece se afogar – e nos
afogar – em um mar de pensamentos que vão e vêm e nos
arrastam para dentro do universo que circula na cabeça dela.
Esses pensamentos vêm marcados por longos trechos em
que as vírgulas são protagonistas:
Cheguei da corrida me sentindo empurrada ladeira abaixo e
como domingo era o dia da semana no qual eu me permitia
abdicar do controle logo no café da manhã comi cuscuz de
milho e bolo de goma e biscoito peta e todas as iguarias da
terra seca molhadas na manteiga e mais tarde abri a caixa de
bombons e meti para dentro Serenata de Amor e Alpino e
Galak e depois lasanha no almoço e de sobremesa goiabada
com queijo e à tarde sorvete e iogurte e à noite paçoca e pizza
e farinha láctea e a barriga melancia banhuda com seu peso
monstro e aquele calor dos diabos e minha mãe já havia
sentado comigo na mesa da sala embaixo do lustre de vitral
cuja corrente ficava pendurada formando uma curva sorriso e
aí sob aquela luz amarela, que para uma formiga poderia
denotar a abóbada de uma igreja e a salvação dessas coisas
que vão além da conta, minha mãe desenhou uma planilha
com a régua – e agora percebo que régua realmente é um
objeto que combina muito com minha mãe – e foi separando
os dias da semana e olha, na segunda você pode comer
cuscuz, na terça farinha láctea, na quarta lasanha e assim
sucessivamente, dividindo ao longo da semana todas as
porcarias – que na época não eram tão porcarias assim,
porque há havia o lance do açúcar, mas não tinha essa coisa
de glúten, lactose e a porra toda, importavam mesmo as
calorias –, mas o fato é que apesar da explanação da minha
mãe fazer todo sentido eu já tinha me amarrado ao maldito
desacato (…).[54]
Conforme fui me embrenhando pelo livro, me dei conta de
que muito do que senti ao lê-lo tem relação não apenas com
as ideias, mas justamente com a maneira como nos são
apresentadas a partir dos longos parágrafos concatenados
com o suporte de algumas tantas vírgulas e travessões.
Observe que no trecho que trago em destaque, ao passar a
relatar a seleção que a mãe faz das comidas por dia da
semana, as vírgulas são empregadas para pontuar a
separação dos dias, como se ali no texto estivesse sendo
reproduzida a separação de cada dia da semana trazida na
planilha desenhada pela mãe. Antes disso, não havia vírgulas
ou qualquer outra marca de pontuação: a oralidade mais uma
vez se mostra presente a partir das marcas de repetição de
estruturas como “e” que apresentam o sequenciamento das
ideias.
É importante entendermos que os exemplos que destaco
aqui e que podem, a princípio, parecer “desajustados” aos
olhos de quem vê apenas a norma, na verdade derivam de um
profundo conhecimento desses recursos na escrita. Como
dito anteriormente, escrever é estudar, observar e exercitar.
Para poder trazer para a própria escrita essas formas, é
importante conhecê-las e “testá-las”. E para conhecê-las,
temos que observá-las, estudá-las, pensá-las como parte do
seu projeto de escrita.
É possível fazer um grande apanhado sobre questões de
pontuação que impactam o sentido do texto. Não é nosso
interesse neste livro falar sobre todas elas. Meu interesse
está em fomentar a observação ativa dos recursos
disponíveis e como seus usos se consolidam nos textos a que
temos acesso no nosso cotidiano. Mas se me permitem um
breve conselho, dentre os muitos que podem ser oferecidos:
é importante conhecer o gênero textual a que vamos
“submeter” nossas ideias. É menos provável que um artigo
acadêmico de engenharia venha organizado a partir de
longos parágrafos em que o ritmo do texto se dá pela
concatenação das ideias apenas pela separação por vírgulas,
ou então a partir de frases curtas e entrecortadas, que geram
suspense ou tensão. É provável que os argumentos sejam
articulados a partir de outros recursos, com pontuação mais
“conservadora” e entrelaçamento de articuladores
argumentativos que marcam a apresentação, o
sequenciamento e a contraposição de ideias. Sabe a
sequência que mencionei logo no início do capítulo, os
queridos “mas”, “porém”, “todavia”, “contudo”, “no
entanto”, “entretanto”? Certamente, são bastante
frequentes, junto com inúmeros outros, em artigos
acadêmicos e teses. Cada texto – e cada gênero – demandará
de nós um conjunto de elementos em função das
características e necessidades que derivam da nossa
intenção, do objetivo do projeto, das possíveis regras para
sua escrita e do impacto que se almeja ante a audiência, entre
outras características e questões que podem surgir.
Este capítulo é mais um convite a você que está do outro lado
desta página. São incontáveis os recursos que tornam nossos
textos mais “redondos”, mais próximos daquilo que
queremos despertar em quem nos lê. Estamos diante de um
sem-fim de possibilidades, com as quais vamos lidando
conforme nos colocamos diante de novos textos, novos
projetos de escrita – nossos e das tantas pessoas que lemos e
admiramos. Quando Rosa Montero compartilha conosco seu
processo criativo em seu livro A louca da casa,
[55] temos a
possibilidade de nos conectarmos com aquilo que é ao
mesmo tempo tão pessoal e tão comum a tanta gente que
escreve: os textos perambulam em nossas cabeças, mesmo
quando não estamos diante do papel ou da tela do
computador. E esse perambular tem, muitas vezes, forma.
(Re)pensamos a ordem do que pretendemos escrever,
criamos frases curtas e longas, jogando para lá e para cá
vírgulas, pontos, pontos de interrogação e exclamação.
Inventamos palavras, damos usos inusitados às que já
conhecemos. Esse é um exercício continuado, que não se
“resolve” – é um movimento que está sempre lá. Muitas
vezes nos sentimos até mesmo traídas pelas
(im)possibilidades da escrita, como bem aponta Conceição
Evaristo, ao falar da relação entre oralidade e escrita. Ao
escrever, estamos refletindo e mexendo o tempo todo com os
recursos linguísticos que temos à disposição naquele
momento de nossa história. De forma mais ou menos
consciente, estamos continuamente desbravando esses já
conhecidos – mas sempre novos – elementos. Porque cada
texto é único, e os recursos podem se revelar e se organizar
de formas absolutamente distintas em cada um desses
textos, a partir daquilo que somos hoje e do que seremos
mais adiante, quando mais histórias, leituras,
conhecimentos e experiências cruzarem nossos caminhos,
nos permitindo ressignificar aquilo que conhecemos e com
que trabalhamos.
5.
A escrita para além do texto
Quando eu decidi criar o curso “Escrever sem medo”, minha
preocupação primeira estava em pensar de maneira mais
generosa e cuidadosa o processo de escrever. Para mim, essa
postura passava por desmistificar o processo de escrita e
mostrar o quanto há inúmeros fatores envolvidos no
entendimento que temos de textos e de como funciona o
processo da escrita dos mais variados tipos. Quando fui
convidada a trazer as ideias do curso para este livro, entendi
que essas reflexões também deveriam ser trazidas para este
espaço, em vez de ficarem circunscritas ao curso.
Escrever demanda tempo: para estudar, para planejar,
para redigir, para revisitar. Em um mundo em que o ditado
“tempo é dinheiro” tem bastante força, pode ser desafiador
escrever regularmente. E pode demandar também
influência, a depender dos interesses de quem escreve: para
ser publicado por grandes editoras ou jornais, ou você se dá a
conhecer ou você é, de alguma forma, já conhecido. Quando
se conhecem – e se têm em alta conta – pessoas que podem
contribuir para alavancar seu projeto editorial, suas chances
certamente passam a ser distintas das chances de quem não
tem acesso a esses recursos. Não quero, ao fazer essa
afirmação, parecer reducionista ou simplista demais, mas
são inúmeros os casos de pessoas que enviam seus
manuscritos e sequer são lidas ou respondidas. São muitos os
textos que chegam às editoras, inevitavelmente não serão
todos publicados. Assim, é preciso pensar também: quem é
visto e como? Quando, em momento anterior do livro,
mencionei que escrever é também estratégia, é possível
pensarmos também sob essa perspectiva: quais são os passos
para que um livro chegue a uma livraria? Ao serem
lançados, quais são os livros que ganham destaque, quais são
transformados em “promessa” e contam com maior
publicidade? Falar sobre isso pode soar incômodo e
rapidamente a conversa pode se deslocar para o
desmerecimento de quem ocupa espaço de destaque nos
lançamentos.
Mas não se trata disso: ao fazer essas perguntas, estou
aqui propondo uma conversa sobre as dinâmicas que fazem
parte do processo da escrita, mas que parecem pouco
exploradas quando se escreve sobre o tema. Não se trata de
diminuir quem tem destaque, mas de elaborar por que tão
poucos têm direito ao destaque e, mais ainda, por que os que
não têm destaque não o têm.
Além disso, escrever pode demandar também dinheiro. O
que quero dizer com isso? São inúmeros os casos de pessoas
que consolidaram suas carreiras como escritoras já depois de
terem consolidada uma outra carreira, ou seja, a questão
financeira já estava “resolvida” a partir de um outro lugar,
não necessariamente o da escrita. Há também inúmeras
escritoras e escritores que produzem seus textos nas horas
“livres” de que dispõem, porque não é da escrita que vem o
seu sustento. E há também escritoras e escritores que
seguiram escrevendo mesmo diante das inúmeras
adversidades financeiras – entre outras tantas – em suas
vidas. Assim, pensar a escrita como carreira pode requerer
um planejamento que não necessariamente vai levar à
satisfação financeira. Em função disso, é possível que seja
necessário encontrar nas brechas da vida o espaço para
escrever, tendo que consolidar o aspecto financeiro em outro
lugar.
Pensando ainda nos textos que são publicados através de
editoras, é inegável considerar também a diferença de
recursos entre as próprias editoras, maiores e menores, que
levarão a diferentes oportunidades nos espaços de mídia
para alavancar suas obras e autores.
Há aqui uma complexidade de elementos que nos leva a
pensar na estrutura capitalista em que vivemos e que,
inevitavelmente, perpassa a jornada do escrever. Há as
demandas por uma continuada produtividade e entrega. Há
também o entrelaçamento entre questões de raça, classe e
gênero, que inevitavelmente inundam o universo da escrita e
as quais mencionei em alguns momentos deste livro. Não há
meritocracia que dê conta de tantos enfrentamentos.
Histórias de superação de inúmeras dificuldades – sistêmicas
– podem, sim, nos servir como inspiração para seguir a
jornada, mas jamais devem ser entendidas como exemplo
único de como conquistar um espaço no universo da escrita
pública. Para cada um ou dois “exemplos de superação” que
desbravaram um universo ainda bastante elitista, racista e
machista, há outras inúmeras pessoas que nadaram,
nadaram, mas não alcançaram a praia da publicação,
visibilidade, exposição e alcance.
Ter isso em vista pode parecer desolador, mas, ao trazer
esses elementos de maneira breve, minha intenção é
convidar as pessoas a pensarem sobre o lugar que elas
mesmas ocupam e, especialmente, o lugar que ocupam as
pessoas que “chegaram” lá. Em vez de ser motivo de
desistência e desânimo, minha fala vem no sentido de
pensar e propor caminhos e encontros que mobilizem a
escrita de quem não é vista ou se vê representada pelos
textos que circulam por aí. Pode ser a troca entre você e suas
amigas que escrevem poemas; pode ser o coletivo que produz
jornalismo independente; pode ser o grupo de pessoas que
tinham blogs e hoje discutem literatura em encontros
regulares; pode ser o grupo que se apoia na realização dos
trabalhos da faculdade. Pode ser através da participação em
um projeto como o Leia Mulheres, com vistas a conhecer
novas autoras e formas de escrever e se expressar. Pode ser
através da produção de zines e outras tantas formas de
publicação independentes. Você, enquanto me lê, pode já ter
outros caminhos em vista e em atividade. Reconhecer o árido
percurso que pode levar à publicação em larga escala é uma
maneira de pensar e construir os caminhos “alternativos” a
essa lógica ainda tão presente no mercado editorial.
O meu convite para que você permaneça na escrita, se
assim o desejar, é um convite cravado no entendimento dos
inúmeros desafios que podem estar postos. No entanto,
como dizem tantas pessoas que escrevem, não escrever pode
ser ainda mais desolador. Encontrar as brechas, a partir da
sua realidade, das suas possibilidades, é o que espero que
possamos fazer. No dizer de Gloria Anzaldúa:
Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da
complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha.
Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim
mesma também. Porque o mundo que crio na escrita
compensa o que o mundo real não me dá. No escrever coloco
ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo.
Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha
fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando
falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim,
sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e
consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me,
alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma
profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me
convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer
não é um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que
eu escreverei, sem me importar com as advertências
contrárias. Escreverei sobre o não dito, sem me importar com
o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente,
escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo
maior de não escrever.[56]
A escrita e o medo: estratégias?
Em uma das minhas turmas de escrita, propus o seguinte
exercício: eu diria uma palavra e, a partir dela, os
participantes escreveriam por cinco minutos, sem pensar
demais, sem voltar para editar o texto. Apenas escreveriam o
que lhes viesse à cabeça no momento em que eu
mencionasse a palavra. Eu sugeri este mesmo exercício
também aqui neste livro. Não se trata de uma técnica
inovadora inventada por mim, mas de uma estratégia
utilizada por muitas pessoas na tentativa de “destravar” a
escrita. Quando finalizado o exercício, vem a sugestão de
deixar o texto “descansar” e voltar a ele horas (ou dias?)
depois, na busca por um afastamento necessário do texto e
das possíveis críticas imediatas a ele. Vários foram os relatos
de pessoas que se surpreenderam ao se darem conta de que
estavam escrevendo, “sem pensar demais”, durante o
exercício. Essa é apenas uma estratégia que pode ajudar a
organizar seus pensamentos através da escrita, sem que você
apague imediatamente aquilo que produziu a partir da forte
autocrítica que muitas vezes nos toma ao escrever. Escolher
uma palavra, uma situação, um objeto pode ser um caminho
interessante para levar a escrita a fluir.
Assim, ao entendermos que a escrita se consolida no
exercício – e não na inspiração imediata –, podemos encaixar
diferentes estratégias no cotidiano para seguir escrevendo.
Há quem escolha um dia da semana ou um momento do dia
para organizar listas das ideias que passaram pela cabeça; há
quem elabore mapas mentais de uma ideia para visualizar o
que seria o texto completo; há quem reserve alguns minutos
em um momento do dia para discorrer, como no exercício
que ofereci em meu curso, sobre um tópico de interesse sem
qualquer interrupção; há quem faça uso dessa estratégia de
maneira recursiva, escolhendo um tópico a partir de um
primeiro texto e, então, desenvolvendo mais amplamente
aquela ideia específica; e há, ainda, quem desenvolva uma
ideia ou conjunto de ideias a partir de perguntas norteadoras,
como “do que se trata o tema?”, “quem participa da
situação?”, “onde ela acontece?”, “quando acontece?”,
“como acontece?” e “por que acontece?”. Essas diferentes
estratégias não são excludentes e podem ser empregadas em
diferentes etapas do processo de escrever.
Quando há projetos específicos em andamento, há ainda
quem defina um objetivo: preciso escrever três parágrafos
hoje. Ou uma página. Há quem delimite o que é preciso ser
feito em termos de caracteres: mil, 2 mil, 5 mil por dia. É um
caminho norteador do tempo que será preciso para escrever
um projeto completo quando se sabe qual será seu tamanho.
Um exemplo: a submissão de artigos científicos para
publicação frequentemente é feita a partir do número de
caracteres permitidos. Ao estabelecer quantos caracteres (em
média) se vai escrever por dia, ou por semana, tem-se uma
melhor estimativa do tempo necessário para a escrita total
do projeto. É claro que nem sempre o plano inicial será
mantido: há dias em que se escreve menos, há dias em que se
escreve mais. Mas se pontuamos neste livro, em diferentes
momentos, que a rotina de escrita é bem mais importante e
representativa do que um lampejo de inspiração, estabelecer
metas factíveis pode contribuir para a manutenção dessa
rotina.
Para quem não tem um projeto específico, mas gostaria de
escrever com regularidade, pode parecer difícil encaixar a
escrita na rotina. Uma possibilidade é registrar
cotidianamente o que chamou a atenção no dia: as
impressões sobre um livro lido, o episódio da novela; criar
uma história fictícia a partir da conversa que você ouviu no
ônibus na volta do trabalho; criar o hábito de registrar o que
se lembra dos seus sonhos todas as manhãs ao acordar.
Quando desfazemos a ideia de que apenas o que é “nobre”
tem vez no registro escrito, surge a possibilidade libertadora
de transformar a escrita no lugar da conversa consigo (ou
com o outro), na experimentação de diferentes caminhos e
gêneros.
Exercício
Agora que você chegou até aqui, eu gostaria de propor
um último exercício. Considere as conversas
propostas ao longo do livro e escreva de maneira
fluida, sem pausas, durante 15 minutos. Você poderá
escolher o tema e também o gênero textual. Ao
concluir esse período, deixe seu texto repousar.
Algumas horas depois, volte a ele e revisite sua
escrita. Analise concretamente cada parte do texto e
revise as estruturas e as ideias: há algo redundante?
Alguma estrutura recorrente de que você goste? Algo
que queira acrescentar ou retirar? Alguma dúvida com
relação à pontuação? Acesse um compêndio
gramatical, se considerar necessário. Reescreva seu
texto com base nessas observações e, em seguida,
releia o que você produziu. O que você vê?
6.
Para finalizar
Eu entendo este meu primeiro livro sobre escrita como um
convite: a pensar a própria escrita com mais generosidade, a
observar a escrita do outro com vistas a aprender sobre ela, a
experimentar diferentes gêneros e recursos, em vez de
determinar que a escrita parte de um gênio inalcançável. É
também um convite para entender a produção textual como
uma jornada que vai se transformando ao longo de toda a
nossa história; afinal de contas, os textos não brotam de
árvores e são fruto do nosso entendimento de mundo num
dado momento da nossa trajetória. As ideias que nos surgem
e que se transformam em textos são uma parcela daquilo que
aprendemos e observamos da vida – com maior ou menor
dedicação, com maior ou menor formalidade –, e reconhecer
isso é também entender que todos os textos produzidos estão
cravados num dado momento não só da nossa história, mas
da história do mundo. São fagulhas, pequenas contribuições,
que se juntam a outras tantas que falam de dores, angústias,
encontros, estruturas falhas, universos combinados ou
colididos. Fazer essa afirmação implica reconhecer as marcas
que o período em que estamos inseridos deixa também nos
textos produzidos, porque não estamos isolados do mundo,
porque nossa escrita não ignora as marcas do nosso tempo.
Da mesma maneira, nossa escrita não ignora as inúmeras
referências que vamos construindo e consolidando ao longo
da nossa história.
Sabe a paranoia da escrita que precisa ser original e
criativa? Pois é. Eu me pergunto de onde vem essa ideia que
atordoa e persegue escritores de todas as idades, como se
“escrever algo nunca visto” fosse sinônimo de escrever
sobre algo nunca comentado antes. Quanta ilusão, quanto
sofrimento em vão! Assim, este livro é também um convite
para desmistificar essa lógica de uma originalidade vazia,
como se ela pudesse se concretizar sem que você elaborasse a
partir de todo o conhecimento que construiu e que quer
desbravar, seja sobre sua própria história, seja sobre a
história do mundo.
E embora não tenha sido o foco do livro detalhar todas as
milongas envolvidas nos diferentes momentos da história da
literatura nacional (e da língua escrita brasileira), não nos
esqueçamos de que, ao falar de escrita, estamos falando de
uma continuada disputa de forças, engendrada por
diferentes atores ao longo da história, a partir das questões
de suas épocas, com um “pano de fundo” voltado à questão
da língua e seus usos possíveis na escrita. Pensar quem tem o
direito a escrever e como, o quanto será validado em sua
escrita e que escrita é essa, é parte importante da circulação
de textos escritos. É parte fundamental de se pensar o
escrever.
Assim, este meu texto é também um convite para
desencastelar a escrita. Um convite para entendê-la como
um lugar múltiplo, de afirmação de identidades, de busca
pela negociação de sentidos vários, e não de uma “utilidade”
única e específica. Escrever pode ser sinônimo de aniquilar a
dor, transformar o viver, criar outros mundos, consolidar
experiências e conhecimentos, reafirmar posições. Pode ser
assustador para alguns, revitalizante para outros.
Essas definições e possibilidades me levam de volta para a
escrita e sua idealização. Do que as pessoas assumem que
“pode” ser dito, e como pode ser dito. Do ideal em tudo – na
forma e no conteúdo. Da elitização dos temas e de quem pode
segurar a caneta e pressionar o papel para expressar suas
ideias.
Escrever é tudo o que pontuei neste livro, e tanto mais. E são
tantas as escritoras que falam sobre suas jornadas de escrita
e o que representam para elas. Pode ser difícil, confuso,
árduo. Mas, para muitas pessoas, o pior é não escrever. Sobre
o cotidiano, sobre a vida íntima, sobre o dia que corre. Sobre
a mosca que morre, o estrondo na esquina, a carne que
incomoda. Sobre a guerra de que não se ouve falar. Sobre a
manifestação política, o dia a dia documentado no
Instagram, o próprio ato de escrever, a vida em sociedade.
Escrever é criar no texto uma realidade que só se vê ali,
mesmo quando o que escrevemos é a realidade em que
vivemos. No respiro, na hesitação e na realização de um
projeto, grande ou pequeno, público ou privado, vamos?
1 Para trazer apenas alguns nomes importantes da área: Ataliba Teixeira de Castilho,
Carlos Alberto Faraco, Gladis Massini-Cagliari, Ingedore Koch, José Carlos de Azeredo,
Luiz Antônio Marcuschi, Marcos Bagno, Maria Helena de Moura Neves, Marli Leite,
Stella Maris Bortoni-Ricardo, Vanda Elias, entre inúmeros outros.
2 As redes sociais se transformam rapidamente a partir das necessidades trazidas por
quem as utiliza. Além disso, há sempre novas redes surgindo, o que pode levar ao
declínio de outras tantas. O exemplo do WhatsApp faz sentido no ano de 2024, mas
talvez daqui a alguns anos não mais…
3 Este livro foi escrito em 2023, num momento em que esse era o limite de caracteres
para as legendas do Instagram. Essas características, claro, podem mudar com o
tempo.
4 LYGIA Fagundes Telles. Vídeo (5 min). Publicado pelo canal Companhia das Letras.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iZcS6KpsWc8.Acesso em: 20 nov.
2023.
5 BORGES, Stephanie. Fred Moten e Stephanie Borges: dois poetas conversam no
escuro. Suplemento Pernambuco, [s.d.]. Disponível em:
http://www.suplementope.com.br/ensaio/3082-dois-poetas-conversam-noescuro.html. Acesso em: 20 nov. 2023.
6 MARAN, Meredith. Why We Write. Nova York: Plume, 2013.
7 MESQUITA, A. C. “Apresentação”. In: WOOLF, Virginia. Um esboço do passado. São
Paulo: Nós, 2020.
8 DURAS, Marguerite. Escrever. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2021.
9 Conheça os textos no blog da autora:
https://www.alinevalek.com.br/blog/tag/personas/.
10 “Natureza dialógica da consciência, natureza dialógica da própria vida humana. A
única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo
inconcluso. A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo:
interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e
com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os
atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida
humana, no simpósio universal.” (BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed.
Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 348.)
11 Na Linguística, o termo mais comum usado para se referir a essa forma
costumeiramente ensinada na escola é “norma-padrão”. Para mais informações,
sugiro a leitura de FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns
nós. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. BAGNO, Marcos. Norma linguística &
preconceito social: questões de terminologia. Veredas, Revista de Estudos Linguísticos,
Juiz de Fora, v. 5, n.2, jul/dez, 2003.
12 BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico. Glossário Ceale, [s.d.]. Disponível em:
https://www.ceale.fae.ufmg.br/glossarioceale/verbetes/preconceito-linguistico.
Acesso em: 20 nov. 2023.
13 GOUVEIA, Maria Carmen de Frias e. A categoria gramatical de género do português
antigo ao português actual. In: Rio-Torto, Graça Maria; Figueiredo, Olívia Maria; Silva,
Fátima (ed. Lit). Estudos em homenagem ao Professor Doutor Mário Vilela. Porto: FLUP,
2005. pp. 527-544. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316/13383. Acesso em: 20
nov. 2023.
14 MACHADO, Helena. Memória de ninguém. São Paulo: Nós, 2022.
15 LEVY, Deborah. Coisas que não quero saber. Trad. Celina Portocarrero e Rogério
Bettoni. São Paulo: Grupo Autêntica, 2017.
16 Nota sobre esta edição. In: JESUS, Carolina Maria de. Casa de alvenaria. Volume 1:
Osasco. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
17 REBINSKI, Luiz. Novas edições reacendem polêmicas sobre Carolina Maria de Jesus.
Rascunho, 5 set. 2021. Disponível em: https://rascunho.com.br/noticias/novasedicoes-reascendem-polemicas-sobre-carolina-maria-de-jesus. Acesso em: 20 nov.
2023.
18 FARACO, Carlos Alberto. História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo:
Parábola Editorial, 2016.
19 O livro do professor Carlos Alberto Faraco História sociopolítica da língua
portuguesa traz um estudo minucioso das inúmeras questões envolvidas nas formas
como a língua portuguesa foi se transformando ao longo do tempo. Fica o convite
para essa leitura importante no campo da linguagem.
20 BORBA, Lilian do Rocio. O modo brasileiro de dizer língua e nação. In: Estudos
Linguísticos, v. 34, pp. 980-985, 2005.
21 Para um olhar aprofundado sobre algumas das discussões em torno da obra de
Carolina Maria de Jesus, ver: PENTEADO, Gilmar. A árvore Carolina Maria de Jesus:
uma literatura vista de longe. In: LITERATURA E PERIFERIA – Estud. Lit. Bras. Contemp. n.
49, pp. 19-32, set./dez. 2016. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/elbc/a/RLd6tQFZCtCRZJ68SN9PprS. Acesso em: 20 nov. 2023.
22 MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 22.
23 Ibid., p. 22.
24 MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 22.
25 REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
26 BARBOSA, Zélia de Oliveira. Ilhota: testemunho de uma vida. Porto Alegre: UE, 1993.
27 hooks, bell. Teaching to Transgress: Education as the Practice of Freedom.
Abingdon: Routledge, 1994.
28 ELIAS, Vanda Maria; Koch, Ingedore Villaça. Ler e escrever: estratégias de produção
textual. São Paulo: Editora Contexto, 2008.
Marcuschi, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São
Paulo: Cortez, 2010.
29 SANTANA, Tayrine; Zapparoli, Alecsandra. Conceição Evaristo – “A escrevivência
serve também para as pessoas pensarem”. In: Itaú Social Agência de Notícias, 9 nov.
2020. Disponível em: https://www.itausocial.org.br/noticias/conceicao-evaristo-aescrevivencia-serve-tambem-para-as-pessoas-pensarem. Acesso em: 20 nov. 2023.
30 Veja, por exemplo, a manchete deste artigo do jornal Correio Braziliense:
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2020/11/4891823-a-gentecombinamos-de-nao-morrer.html.
31 O artigo completo da autora, intitulado “Caro colega: exclusão linguística e
invisibilidade“ pode ser acessado aqui: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?
codigo=2547161.
32 Sobre isso, veja, por exemplo, os trabalhos do pesquisador Guilherme Mäder.
33 A percepção sobre o genérico tem sido alvo de inúmeros estudos. Veja, por
exemplo, os estudos de REDL, Theresa; FRANK, Stefan L.; SWART, Peter de; HOOP,
Helen de. The male bias of a generically-intended masculine pronoun: Evidence from
eye-tracking and sentence evaluation. In: PLOS ONE 16(4), abr. 2021. Disponível em:
https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0249309. e GYGAX,
Pascal; GABRIEL, Ute; SARRASIN, Oriane; OAKHILL, Jane; GARNHAM, Alan. Generically
intended, but specifically interpreted: When beauticians, musicians, and mechanics
are all men. In: Language and Cognitive Processes, 23:3, 464-485, 18 mar. 2008.
Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/01690960701702035.
34 Veja, por exemplo, o artigo científico de Lau e Sanches (2019), que não só discute a
questão como também faz uso da linguagem não-binária.
LAU, Heliton Diego; SANCHES, Gabriel Jean. A linguagem não-binária na língua
portuguesa: possibilidades e reflexões making herstory. Revista X, [S.l.], v. 14, n. 4, pp.
87-106, set. 2019. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/revistax/article/view/66071.
Acesso em: 20 nov. 2023.
35 Observe que aqui estamos empregando a estrutura não binária em uso corrente
hoje no português, com término da palavra em “e” quando há flexão de gênero -a e -o
no final de substantivos relacionados a pessoas.
36 CAê, Gioni. Manual para o uso da linguagem neutra em Língua Portuguesa. UNILA,
2020. Disponível em: https://portal.unila.edu.br/informes/manual-de-linguagemneutra/Manualdelinguagemneutraport.pdf. Acesso em: 20 nov. 2023.
37 Ingedore Koch, linguista brasileira, fala sobre os movimentos de retração e
progressão dos textos em diferentes trabalhos.
38 O NOME disso. Intérprete: Arnaldo Antunes. In: NINGUÉM. Rio de Janeiro: Sony,
1995. CD, faixa 3.
39 KOCH, Ingedore Villaça. A coesão textual. São Paulo: Editora Contexto, 1989.
40 É possível ler o texto aqui:
https://www.estadao.com.br/opiniao/uma-escolha-muito-dificil.
41 UMA ESCOLHA muito difícil. Estadão. São Paulo, 8 out. 2018. Disponível em:
https://www.estadao.com.br/opiniao/uma-escolha-muito-dificil. Acesso em: 21 nov.
2023.
42 UMA ESCOLHA muito difícil. Estadão. São Paulo, 8 out. 2018. Disponível em:
https://www.estadao.com.br/opiniao/uma-escolha-muito-dificil. Acesso em: 21 nov.
2023.
43 O título do editorial é “Uma escolha muito difícil” porque os autores defendem,
justamente, se tratar de uma disputa em que os dois candidatos não seriam, na
perspectiva do jornal, os melhores para a disputa.
44 GARDEL, Stênio. A palavra que resta. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 12.
45 COM PLACAR de 3 a 1 contra Bolsonaro, julgamento no TSE é suspenso. Veja, 29 jun.
2023. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/julgamento-bolsonaro-tse.
Acesso em: 21 nov. 2023.
46 Para uma discussão detalhada sobre o tema:
OLIVEIRA, Niara de; Rodrigues, Vanessa. Histórias de morte matada contadas feito
morte morrida. Curitiba: Drops Editora, 2021.
47 A notícia está aqui:
LESSA, Juan. Mulher é morta a facadas dentro da própria casa em Araruama, RJ; exmarido é o principal suspeito. G1, 11 maio 2023. Disponível em:
https://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/2023/05/11/mulher-e-morta-afacadas-dentro-da-propria-casa-em-araruama-rj-ex-marido-e-o-principalsuspeito.ghtml. Acesso em: 21 nov. 2023.
48 GORNICK, Vivian. The Situation and the Story: The Art of Personal Narrative. Nova
York: Farrar, Straus and Giroux, 2002.
49 LION Man. Intérprete: Criolo. In: NÓ NA orelha. São Paulo: Oloko Records, 2011. CD,
faixa 9.
50 O texto da manchete foi posteriormente alterado para “(…) fala apontada como
homotransfobia”. É possível ler o texto aqui:
FAMOSOS pedem prisão de André Valadão após fala apontada como
homotransfobia. Folha de S.Paulo, 3 jul. 2023. Disponível em:
https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2023/07/famosos-pedem-prisao-de-andrevaladao-apos-fala-supostamente-homotransfobica.shtml. Acesso em: 21 nov. 2023.
51 PASTOR André Valadão diz que Deus mataria todos os LGBTQIA+ se pudesse. Folha
de S.Paulo, 3 jul. 2023. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/pastor-andre-valadao-diz-quedeus-mataria-todos-os-lgbtqia-se-pudesse.shtml. Acesso em: 21 nov. 2023.
52 CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004, p. 9.
53 SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991, pp. 252-253.
54 MACHADO, Helena. Memória de ninguém. São Paulo: Editora Nós, 2022, pp. 152-153.
55 MONTERO, Rosa. A louca da casa. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2015.
56 ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do
terceiro mundo. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 08, n. 01, pp. 229-236, 2000.
Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
026X2000000100017&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 21 nov. 2023.
Mariana Saliby
Jana Viscardi nasceu em Votuporanga, no interior de São Paulo. É
graduada, mestre e doutora em Linguística pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). Com o lema “Como nos comunicamos importa”, há
oito anos cria conteúdo nas redes sociais com o objetivo de chamar a
atenção para a importância da linguagem no nosso cotidiano, da leitura
de notícias à escrita de um e-mail de trabalho. Jana também oferece
cursos e palestras sobre as relações entre linguagem e sociedade, temas
pelos quais se interessa há pelo menos vinte anos. Escrever sem medo é
seu livro de estreia.
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